Publicado em 04/11/2018

por Ricardo Vieira Lisboa

Câmara que filma outra câmara; uma voz trémula; uma lágrima descendo o rosto; “as pessoas têm que acordar”; uma fotografia surge lentamente, mergulhada no líquido revelador; uma narração em tom arrastado.

Gilda Brasileiro – Contra o Esquecimento: dois realizadores, quatros filmes, um para cada mão. Primeiro, um filme-retrato de Gilda, uma mulher que investiga a herança esclavagista da sua cidade, Salesópolis. Depois, um filme-investigação, sobre os documentos, sobre as ruínas dos postos comerciais de seres humanos, sobre os testemunhos dos mais velhos que ainda conheceram os resquícios desse horror. Mas também, um meta-filme, sobre o processo de fazer cinema, de enveredar pelo mato de câmara em riste e confrontar os descendentes dos mercenários nas suas confortáveis mitologias. E por fim, um foto-filme-ensaio, feito a partir de negativos do final do século XIX onde as imagens de publicidade da cultura do café se fazem testemunho de uma realidade (Didi-Huberman ficará contente).

Este é um filme que se des-multiplica em soluções visuais, ao ponto de estas se tornarem contraproducentes. Ainda assim, apesar das convulsões que desarranjam o emaranhado documental, fica a solenidade de Gilda, de cigarro entre os lábios, olhando o verde. E, claro, um sorriso desarmante encontrado nos confins do esquecimento. É esse o ponto mais certeiro do filme, a relação entre a materialidade dos documentos fotográficos e o acesso ao que estes contêm. Os realizadores partem de um conjunto de fotografias onde se encenam os vários momentos da produção do café e descobrem nelas evidências de trabalho escravo e infantil. Só que esses negativos surgem num confronto com a (in)definição da imagem, feita (in)definição da própria História: o pontilhismo da impressão a jacto versus a brilhante definição dos daguerreótipos. Porque no acto de revelar as fotografias, de as digitalizar e de investigar os seus recantos, os realizadores reflectem afinal o processo de Gilda, que descobre, clareia e re-define o passado.




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