Publicado em 04/11/2018

por Juliana Costa


Primeira imagem: um dedo que aponta para cima. “Pensar com as mãos”, diz a voz frágil de Godard que acompanha a imagem. Não uma mão justa, mas justo uma mão. A mão de São João Batista, profeta andrógeno, que na celebre pintura de Leonardo da Vinci aponta para o alto prenunciando a chegada de quem virá depois. Dedicado “aos que virão depois de nós.”.

Em Imagem e palavra, ou O livro de imagens (tradução literal do título em francês), Jean-Luc Godard retoma arqueologia de imagens da série História(s) do Cinema, sobretudo na primeira metade. A arqueologia da arqueologia das imagens, já que trabalha com intertítulos e cenas da série. “A imagem virá no tempo da ressurreição”, disse Godard em História(s) do Cinema, (ou será o tempo da ressurreição?), e como tal reatualiza todos os tempos. Para sempre e agora o porteiro de A última gargalhada acompanha as senhoras na chuva, e Johnny Guitar pedirá para Vienna mentir. Também para sempre e agora a bomba explode diante de nossos olhos (horror, horror, horror). “Você não quer mesmo se tornar imortal?”. “O que será de mim se eu não morrer?”. No museu imaginário de Malraux, o tempo é a distância entre dois quadros. Ou entre dois planos. Não importa a distância temporal – não existe tempo na ressurreição – mas o corte, a passagem, a relação. A doce obsessão de Godard.

Imagem e Palavra é também um elogio do fragmento. Fragmento de memória, de história, de imagem. Ode a Bertold Brecht: “Só o fragmento é que preserva a autenticidade”. Ao mesmo tempo (sempre ao mesmo tempo) a violência. Godard violenta os fragmentos, violenta as imagens, como apropriação, como declaração de amor e de horror. O amor e o horror que movem o cineasta que declarou, para desespero de filósofos contemporâneos, que a imagem pensa.

Na segunda parte de Imagem e Palavra, a violência do ato de representar. O contraste entre o ato de representar e a calmaria da representação da invasão norte-americana no Oriente Médio, a amarga obsessão de Godard. Adeus à linguagem. A voz de Anne Marie vaticina: “A terra abandonada, soterrada por letras do alfabeto, inchada de conhecimento, e ninguém escuta”. Como corporificar as imagens do horror? Tirá-las do labirinto fantasma do eterno retorno, em que a bomba e o beijo se repetem infinitamente com igual intensidade? Nunca somos tristes o suficiente para o mundo ser melhor.

Ao final, a dança. A dança virá no tempo da ressurreição e a dança de Godard tem rosto de mulher.




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