Publicado em 16/10/2016

Por Paulo Lima

O artista e ativista inglês George Gittoes parece um profeta bíblico. Barba e longa cabeleira brancas, tem o physique du rôle perfeito para o personagem filantropo que ajuda as crianças pobres de Jalalabad, segunda maior cidade do Afeganistão. Em 2011, Gittoes abriu um coletivo artístico, a Casa Amarela, e posteriormente passou a utilizá-lo para ações humanitárias. Seu trabalho constitui o foco do longa-metragem SNOW MONKEY, uma produção Austrália/Noruega/Afeganistão na qual atua como diretor e ator.

Com psicologia e paternalismo, Gittoes consegue se aproximar e atrair grupos de crianças mergulhadas no cotidiano miserável e violento de Jalalabad. O cinema é a arma de que se vale para operar o milagre dessa transformação. Aos poucos, Gittoes vai se inteirando dos grupos mais próximos do abismo social, e os apresenta ao universo mágico das imagens, ensinando-lhes os truques de como usar uma câmera. O documentário está estruturado a partir da entrada em cena dos incríveis personagens que o diretor vai descobrindo pelo caminho.

Assim, somos apresentados ao menino Irfan, de 9 anos de idade, um arrimo de família que conduz um carro de sorvete pelas ruas de Jalalabad. É com essa atividade que ele supre os oito irmãos e irmãs, já que o pai não trabalha. As figuras das crianças vendedoras de sorvete pontilham a paisagem fervilhante da cidade, a ponto de se autointitularem de “snow monkeys”, uma analogia com os macacos que vivem em todos os cantos do lugar. Se Irfan já é um personagem tocante, o que dizer de Gul Mina, uma criança de apenas 6 anos que, ao lado do irmão de 5, luta pela sobrevivência como catadores e vendedores de latinhas de bebida? Os dois irmãos precocemente adultos protagonizam talvez as cenas mais emocionantes do filme. Suas figuras diminutas e desgrenhadas transmitem uma tal sensação de abandono que é impossível não imaginá-los como tipos de um romance de Charles Dickens. A certa altura, Gittoes, por trás das câmeras, pergunta a Gul Mina quando ela aprendeu a contar. Ela responde: “Quando eu era criança.” Gittoes então questiona: “Você ainda é criança?”

O personagem mais incrível, no entanto, e o que mais monopoliza a atenção de Gittoes, é o menino Steel, um pequeno chefe de gangue que costuma circular por Jalalabad com uma gilete entre os dentes, uma faca e uma seringa que ele diz conter Aids. São suas armas para amedrontar e tomar dinheiro das pessoas. Steel nos remete à lembrança de um personagem como Pixote. O afegão, porém, assume à perfeição a autoimagem de “boss” que inferniza o cotidiano, praticando uma infinidade de roubos e delitos. Steel, cujo nome é Sharif, não tem esse apelido à toa. Diminuto, acendendo um cigarro após o outro, ele exibe uma postura de aço, e poderia encarnar tranquilamente um desajustado juvenil da Nouvelle Vague. É um desses grandes personagens que talvez só o cinema documentário é capaz de revelar.

Como incentivo aos pequenos aprendizes de cineasta, Gittoes faz com que as crianças reencenem nas filmagens pequenos episódios de suas próprias vidas, criando dessa forma uma interessante dramaturgia em que ficção e realidade se misturam. Em Jalalabad a miséria é como uma veia aberta que sangra, e a atuação humanista de pessoas como George Gittoes pode não ser capaz de deter esse fluxo, mas certamente traz um novo sentido à infância desesperada de alguns meninos e meninas. No mínimo, rendeu um belo documentário.




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