Publicado em 14/10/2016

Por Aisha Rahim (Talent Press Rio)

Filho do cineasta Glauber Rocha, a quem já dedicara o retrato Rocha que voa (2002), Eryk Rocha repega novamente na memória do pai neste documentário sobre o Cinema Novo brasileiro, movimento ocorrido no contexto da ditadura militar dos anos 60-70 e do qual, apesar do seu direto parentesco, vem reivindicar uma herança comum a qualquer cidadão do Brasil. Há, aliás, um espectador colectivo que se subentende desde logo no genérico inicial de Cinema Novo, quando é evocado esse momento crucial da história do país: fala-se num cinema que quis “mudar o mundo”, na sua capacidade de unir “arte, utopia e revolução”, na lucidez histórica de querer apresentar “novas imagens do Brasil”.

Entenda-se o saudosismo: há uma evidente urgência em repensar o elo entre a política e o cinema no Brasil. Talvez sejam essas duas dimensões, o cinema e a política, a caminhar de mãos dadas naquele encantatório plano de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, onde um casal corre e continua a correr sob audíveis ameaças de trovoadas e gritos de águia, que também marca o início do filme. Até que ponto os problemas estruturais da sociedade abordados pelo Cinema Novo foram resolvidos, até que ponto a sua discussão é actual?

Para “novas imagens do Brasil”, Rocha recupera antigas imagens do Brasil, recortando e cosendo depoimentos sonoros e excertos de filmes e de acervos pessoais e de televisão relativos a Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Ruy Guerra, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues, Paulo César Saraceni, entre outros nomes que nos anos 60 bateram de frente com as chanchadas e as grandes companhias com filmes de produção de pequeno orçamento.

O encontro de artistas vindo de meios diferentes, a consciência de um subdesenvolvimento no quadro do Terceiro Mundo, o questionamento da burguesia, a procura de espírito independente e de uma pronúncia autoral, a indagação sobre as fronteiras entre cinema popular e intelectual e sobre o capitalismo subjacente ao esquema de distribuição de filmes, a promoção de uma participação colectiva na sociedade e frente ao regime, a crença na arte como força de derrube do medo… As principais características daquele movimento vanguardista são elencadas pela voz dos seus próprios protagonistas, postos a dialogar entre si sem recorrer a cabeças falantes.

Nesse cruzamento de arquivos, Rocha vai paralelamente construindo uma iconografia do Cinema Novo, feita à moda de Eisenstein, num encadeamento de imagens em que também os sujeitos que nelas aparecem não se cansam de correr – uma metáfora da urgência de que há pouco falávamos? – e em que os excertos dos filmes chocam entre si como uma massa plástica feita de linhas de força, carregada de características de expressão visuais, sonoras, sincronizadas ou nem por isso, partilhando muitas vezes as mesmas partituras.

É nessa catadupa de excertos - montagem dinâmica de ordem afectiva - que o sujeito colectivo, as massas, parece ganhar corpo. E talvez seja essa tentativa de resgatar a figura do povo para o grande ecrã o gesto fundamental de Cinema Novo.




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