Publicado em 09/10/2016

Por Carlos Alberto Mattos

A vida é aquilo que acontece enquanto a gente não presta atenção na vida. ENTÃO MORRI, o novo filme de Bia Lessa e Dany Roland, nos propõe algumas pausas para ver momentos em que a vida se mostra por inteiro, sem disfarces. É a vida de uma mulher, vivida por várias mulheres humildes de diversas regiões do Brasil e mostrada de trás para frente. Um flashback documental, uma bonita colcha de retalhos interiorana, costurada pelos muitos ritos de passagem na trajetória feminina: o parto, a adoção, as primeiras sociabilizações no quintal, a extração dos dentes de leite, a criação dos apegos, o vestido novo de aniversário, a idealização do amor e as impressões confusas sobre o primeiro beijo, o despertar para a ideia da morte, o casamento, a traição e a separação, as querelas com o marido de muito tempo, a perda do companheiro de vida, a proximidade do fim e o fim propriamente dito.

Sozinhos com duas câmeras, Bia e Dany filmaram aquelas pessoas em viagens pelo país, sendo a primeira 20 anos atrás. A menina que nasce no final do filme, por exemplo, está completando 19 anos no dia de hoje e veio do Sul com a mãe adotiva para uma sessão do Festival do Rio que promete muitas emoções. Sem luz artificial nem qualquer aparato, os diretores colheram imagens toscas, mas profundamente íntimas e verdadeiras, do coração de um Brasil que pensamos nem existir mais. Se há um paralelo a ser traçado, é com o sublime O Fim e o Princípio, de Eduardo Coutinho, a quem ENTÃO MORRI é dedicado, juntamente a José Carlos Avellar.

Desses flagrantes de momentos cruciais nas vidas dessas mulheres emerge uma singeleza tocante. Das falas saltam pepitas de fraseado popular que merecem figurar numa antologia. Há um misto de simplicidade, visão prática e emoção na maneira como se lida com um defunto que não cabe direito no caixão, um padre que deixa os noivos na igreja esperando, um casal que já perdeu “a empolgação” de um pelo outro, uma senhora que fica sozinha após a saída do enterro do marido ou uma mãe que se dilacera porque pretende doar a filha prestes a nascer. A aproximação dos diretores a esses dramas condensados é ao mesmo tempo ousada – porque testemunham momentos muito delicados – e sutil, já que a presença da câmera em nada parece interferir nos estados de alma.

Estruturalmente, o filme é irregular, com personagens e situações mais sólidas convivendo com outras mais difusas e dispersas. A sequência das extrações dentárias me soou angustiante demais, assim como a meia-idade me pareceu subrepresentada na sucessão de fases. De resto, é de se festejar esse retorno de Bia e Dany a um cinema tão substantivo quanto seus trabalhos nas artes cênicas e ao mesmo tempo tão diferente em termos estéticos. Crede Mi, realizado há quase 20 anos, veiculou uma busca pelo substrato mitológico da vida nordestina através da literatura de Thomas Mann. ENTÃO MORRI põe toda referência externa de lado para surpreender a pura gênese do mistério da existência.




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