Publicado em 14/10/2017

ENSAIO 

Texto de Felipe Ribeiro

As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, foi o longa-metragem vencedor do Prêmio Félix 2017, premiação do Festival do Rio, criada em 2014, destinada a eleger, por meio de um júri, as melhores obras com a temática LGBTQ. Além do filme de Dutra e Rojas, cinco longas das diferentes mostras da Première Brasil concorreram ao troféu este ano: Alguma Coisa Assim, Até o Próximo Domingo, Copa 181, Entre Irmãs e Vende-se Esta Moto.

O prêmio, que teve, ao todo (entre nacionais e estrangeiros), 32 concorrentes deste ano, indica a presença de personagens LGBTQ é uma constante na cinematografia nacional recente. O que chama a atenção, no resultado, é que o prêmio foi para um filme que não tem a temática gay como foco da narrativa. As Boas Maneiras, que trafega entre o fantástico e o horror, traz um casal de lésbicas no centro da trama, mas apresenta o lesbianismo de forma absolutamente natural. Dutra e Rojas inserem as relações homoafetivas, que também estão presentes nas outras obras que concorreram ao prêmio, numa trama cujos conflitos não passam pela questão gay.

Uma cena que ilustra a naturalidade do filme em relação aos personagens LGBTQ é aquela em que a personagem de Isabél Zuaa está em um bar e começa a flertar com outra mulher, vivida pela atriz Gilda Nomance. A aproximação é mostrada com leveza. E tampouco há alarde quando Zuaa e Marjorie Estiano se aproximam e iniciam uma relação amorosa. Não há a intenção de debater o seu comportamento sexual, nem suas diferenças sociais e raciais. Elas não precisam dizer que estão juntas, nem rotular o que possuem. A não necessidade de rótulos estende-se a outras produções que concorreram ao prêmio, como Alguma Coisa Assim. O tema também surge no longa Vende-se Esta Moto, no qual duas amigas crescem trocando beijos e carícias, independentemente da orientação sexual de ambas: uma é hetero e outra é lésbica. Há, nessa repetição de tom, uma constatação de uma maior liberdade nas experimentações sexuais, indo contra a maré repressora atual e dando um salto em relação às primeiras produções brasileiras com personagens gays.

Um dos primeiros longas do Brasil, do qual se tem registro, a abordar de forma mais direta a temática da homossexualidade data de 1966. O drama O Menino e o Vento, de Carlos Hugo Christensen, narra a história de um engenheiro acusado de matar um jovem com quem supostamente estava afetivamente envolvido. O foco do filme não é o relacionamento entre os dois – algo provavelmente impensável na época -, mas sim o comportamento e as reações sociais ao caso.

Nas décadas seguintes, outras produções tangenciaram o assunto, como A Casa Assassinada (1970), Os Machões (1972), O Casamento (1975), Nos Embalos de Ipanema (1978), Pixote - A Lei do Mais Fraco (1980) e O Beijo no Asfalto (1981). Essas produções se aproximam pelo fato de os personagens homossexuais não serem o centro da trama, serem estereotipados ou estarem envolvidos com a prostituição. No caso dos filmes de 1972 e 1975, que são pornochanchadas, os gays são representados com a única intenção de gerar riso. Em O Beijo no Asfalto, por sua vez, a grande questão é o preconceito social que surge quando o personagem de Tarcísio Meira decide beijar um moribundo.

A comunidade LGBTQ possui um envolvimento histórico com a prostituição e o underground, num âmbito político e social que visa se distanciar das constantes repressões. A questão aqui não é tirar isso das telas, mas sim pontuar que tratar desse tema de forma ligeira não enriquece a discussão, apenas a degrada. 

O mesmo pode ser dito em relação aos personagens gays chamados de afeminados. Se não abordados pelos diretores de forma consciente e humanizada, eles servem apenas de gatilho para uma comédia gratuita. 

Na década de 1980 e no início dos anos 1990, os filmes seguem quase a mesma linha da década anterior. O grande divisor de águas para uma potente representação gay no cinema brasileiro parece vir logo após a virada para o século XXI, com o longa Madame Satã, de Karim Aïnouz. Estrelado por Lázaro Ramos, o drama biográfico centra-se na marginal cena gay carioca dos anos 1930. Todo o filme gira em torno da comunidade LGBTQ, focando-se em gays e travestis, e é corajoso na forma de apresentar socioeconomicamente esses personagens.

A partir do filme de Ainouz, há um crescimento exponencial no número de filmes com personagens centrais que são gays e lésbicas – mas, ainda hoje, há poucas produções protagonizadas por trans e travestis. É fato que, nos últimos anos, temos não apenas ficções, mas também documentários que jogam luzes sobre personagens LGBTQ, como Laerte-se (2017), Divinas Divas (2016), Meu Nome é Jacque (2016), São Paulo em Hi-fi (2016), De Gravata e Unha Vermelha (2015), Para Sempre Teu Caio F. (2014), Favela Gay (2014), Meu Amigo Cláudia (2013) e Dzi Croquettes (2009).

Voltando aos filmes em análise, vale pontuar que três deles abordam o casamento, uma temática atual desde a oficialização jurídica das uniões entre pessoas do mesmo sexo, em 2013. Em Entre Irmãs, de Breno Silveira, filme passado nas décadas de 1930 e 1940, há o tema do casamento de fachada, algo frequente em décadas anteriores, principalmente entre homossexuais da classe alta que precisavam manter uma imagem pública de heterossexualidade. Copa 181, por sua vez, também trata do assunto, só que no presente. Taná é um homem gay de meia idade num casamento heterossexual. Ele frequenta saunas para satisfazer seus desejos e sua orientação sexual é aceita pela esposa no final do longa - que, no entanto, não deixa claro se a união continua. Alguma Coisa Assim, por sua vez, expõe Caio, jovem gay que se casa com outro homem. 

Mostrando gerações diferentes, os filmes analisados lado a lado trabalham a evolução nas formas de relacionamento homossexual, abordando todas as possibilidades: dois tipos de casamentos forjados, no passado e no presente, e um casamento gay de verdade, a representar um futuro mais promissor em relação a ter o direito de viver com quem se quer viver, abertamente.

Por fim, com menos sucesso ao abordar o mundo LGBTQ, Até o Próximo Domingo tenta uma mistura de documentário e ficção. O filme aborda o ato de crescer numa família conservadora que não aceita a orientação sexual do seu protagonista, vítima de agressões físicas e psicológicas por parte do pai. Da forma que aborda o assunto, com um recurso à metalinguagem no qual o drama é reencenado por outros atores de uma fictícia peça de teatro, o longa torna-se confuso e perde força. 

No entanto, apesar da diferença de qualidade, todos os seis filmes vão numa maré contrária ao movimento conservador que afeta o Brasil, atualmente. Caminham na direção de mostrar na tela uma maior aceitação social dos gays através da naturalidade dos relacionamentos. Os filmes exibidos no Festival do Rio indicam que, nas narrativas contemporâneas, os personagens LGBTQ enfrentam poucas barreiras e repressões sociais – ou, ao menos, isso não é colocado na tela. Esse processo foi iniciado há alguns anos, e pode ser visto em ficções como Do Começo ao Fim (2009), Flores Raras (2012), Hoje eu Quero Voltar Sozinho (2014), Praia do Futuro (2014) e Beira-Mar (2015).

Pensando num panorama não só brasileiro, mas também internacional, parece que os filmes com personagens LGBTQ não buscam mais chocar o público com cenas fortes de sexo, como fizeram Shortbus (2005) e Azul é a Cor Mais Quente (2013). Essas sequências eram feitas com a intenção de demandar a liberdade sexual, o que não parece ser tão mais necessário com a menor erotização dos corpos homossexuais em cena, como foi o caso de Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016), vencedor do Oscar. Os longas brasileiros analisados, por exemplo, não mostram o sexo em cena de forma tão explícita e abordam a experimentação. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma libertação e de um movimento que tem levado os personagens LGBTQ a, cada vez mais, assumirem o protagonismo nas produções cinematográficas.




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