Publicado em 07/11/2018

por Álvaro André Zeini Cruz

  Sempre que via os filmes de Godard, tinha a sensação de que eram para ser vistos no cinema, mas, por vários motivos, nunca havia conseguido vê-los assim. Godard não é meu preferido: costumo brincar que, caso os cineastas da Nouvelle Vague estivessem à deriva e eu só pudesse salvar um, salvaria Éric Rohmer. De qualquer forma, nessa situação hipotética, Godard provavelmente sobreviveria; boiaria na correnteza de seus planos e vozes, de sua Imagem e Palavra. 

  Sessão lotada, sala quente, um incomum remexer nas poltronas. A certa altura de Imagem e Palavra, uma senhora sai batendo os tamancos, que ecoam mesmo fora da sala. Ela não fora a única; as laterais tinham um vai e vem incomum, mas ninguém se manifestava contra; era como se houvesse uma empatia mútua entre nós, violados pela tela.

  Isso porque as imagens de Godard são violentas: oscilam de uma afinada escala de cinzas à saturação excessiva, da granulação à nitidez, do envelhecimento do analógico ao bug da imagem digital incompleta. Tudo isso numa rapidez de confrontos inesperados, de imagens que se invadem, se sobrepõem. Mas não são imagens líquidas, que escorrem por um tempo igual; pelo contrário, são monolitos que se chocam e se desfazem em lascas, que acertam em cheio os olhos da plateia, acostumados – ou aprisionados – por imagens anestésicas. Da violência vem a liberação e não é incomum que os olhos vaguem da tela para as laterais, para a sala, numa sensação de mediunidade consciente, corroborada pelas falas desconexas do sistema 7.1, que remetem a um ritual de hipnose.

Ao expulsar o olhar do espectador da tela, Godard profana parte da experiência cinematográfica, mas, paradoxalmente, ao arremessá-lo à sala, rematerializa o espaço que envolve o quadro, a caverna escura. A expulsão e o distanciamento fazem parte dessa experiência, que cria uma nova ao lembrar que há em volta um espaço singular, que intervala um mundo para construir outro. Um espaço sagrado. É uma experiência dolorosa, porque mutila qualquer possível latência do olhar. Não é por acaso que uma das primeiras imagens do filme é justamente aquela célebre de Um Cão Andaluz, de Luis Buñuel: o olho literalmente cortado, aberto por uma navalha. 




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