Publicado em 04/11/2018

por Leonel Matusse Jr.


“Clementina de Jesus é o elo de ligação entre o Brasil e a ancestralidade africana”, comenta-se, em dado momento, no documentário de Ana Rieper. Parece ser nesse depoimento que se encontra o norte do filme sobre vida de uma das vozes mais eloquentes da música brasileira.

Nos discursos da cantora, recortados de um amplo material de arquivo, fica claro que a intérprete terá herdado da sua avó a apetência pela canção, o que significa a continuação de uma tradição que é transmitida de geração em geração, neste caso, a partir da oralidade.

Uma das marcas da herança está no facto de o repertório ser composto por temas que interpretam as suas vivências e as das pessoas do seu meio. Trata-se de improvisos semelhantes aos das mulheres do sul de Moçambique, nas cerimônias familiares em que depois de cozinharem juntam-se para cantar em temas improvisados, obedecendo melodias tradicionais.

O batuque presente nas músicas de Clementina testemunha esse legado, pois as danças tradicionais africanas, como o Zoré, Mapiko, Xingomane e a sua larga maioria têm nesse instrumento o elemento comum. E essa consciência está presente na preocupação que houve em traduzir o termo Ngoma, presente nos versos do cancioneiro, que em línguas como Bitonga, Changana e outras do Sul de Moçambique e do grupo Bantu, no geral, significam justamente batuque. Ao explicar que “Bangalê”, um dos temas de Clementina, é uma referência à cidade de Benguela, em Angola, e a mencionar Moçambique e Zimbabwe, o filme remete o espectador ao lugar de origem da intérprete e demonstra que a transmissão da herança cultural a partir da oralidade é a ponte que os mantêm ligados ao passado.

É interessante o modo como o discurso do documentário é construído, a explorar diversas facetas de Clementina, cujo efeito último é a humanização da artista. A figura dos fazedores de arte em projectos similares tende a ser elevada a patamares divinos, ignorando suas trivialidades. A incorporação de entrevistas que passam pela família e amigos torna ainda mais rica a informação sobre a cantora.

“Clementina” é um resgate histórico e ao mesmo tempo um filme profundamente atual, se formos a considerar que o Brasil vive hoje uma efervescência do movimento negro, que tem entre suas principais reivindicações a ausência de representatividade e marginalização do seu legado.




Voltar