Publicado em 24/05/2025

O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte — Foto: divulgação
O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte — Foto: divulgação

Por João Vitor Figueira

“Absolutamente certo. Matemático. Eu havia previsto.” Resolutas e quase estoicas foram as palavras que o cineasta Anselmo Duarte (1920 - 2009) enunciou, num murmúrio, ao ouvir que tinha alcançado uma façanha que ele mesmo compararia, anos depois, com a conquista da Copa do Mundo. 

Há 63 anos, no dia 23 de maio de 1962, o cineasta se tornou o primeiro — e o único, até então — brasileiro a conquistar a cobiçada Palma de Ouro no Festival de Cannes com sua adaptação para os cinemas de O Pagador de Promessas, obra teatral de estrondoso sucesso, cuja reputação também extravasou as fronteiras do país, prefigurando o sucesso posterior do longa-metragem. Para o diretor, foi a coroação de uma ambição recebida com descrença, inicialmente, até mesmo por Dias Gomes, autor da peça original. 

Na ocasião, Duarte, um azarão na prestigiada e charmosa disputa fílmica na Riviera Francesa, superou nomes como Michelangelo Antonioni, Luis Buñuel e Robert Bresson, atraindo a atenção do mundo para a cinematografia autoral brasileira e latino-americana, em posição evidentemente periférica em relação às produções estadunidenses e europeias. E isso acontece justamente em um momento em que o cinema brasileiro passa a destacar uma atenção especial aos problemas sociais do país, mais preocupado em refletir as particularidades, contradições e vicissitudes do Brasil do que se encaixar no esquadro de Hollywood.

Anselmo Duarte com a Palma de Ouro em Cannes — Foto: reprodução
Anselmo Duarte com a Palma de Ouro em Cannes — Foto: reprodução

A consagração foi um momento de celebração nacional e foi um símbolo de um momento de modernização do cinema brasileiro. A obra, que moveu debates coléricos na intelligentsia do país e paradoxalmente deu início a um período de extensa contestação ao cineasta que a idealizou, tensionou questões profundas sobre o país, incluindo o sincretismo religioso, o poder opressivo das instituições como o Estado e a Igreja, a urgência da reforma agrária e fortaleza moral dos despossuídos. Tudo isso acessando com primor os códigos narrativos da tragédia clássica, nessa história sobre um simples matuto de alma inexorável que apenas desejava cumprir o voto que fez.

“O homem, no sistema capitalista, é um ser em luta contra uma engrenagem social que promove a sua desintegração, ao mesmo tempo em que aparenta e declara agir em defesa de sua liberdade individual. Para adaptar-se a essa engrenagem, o indivíduo concede levianamente ou abdica por completo de si mesmo. O Pagador de Promessas é a história de um homem que não quis conceder – e foi destruído”, dissertou Dias Gomes, dramaturgo e escritor, ao analisar o caráter político do texto que assinou e foi eternizado na celulose por Duarte.

A efeméride da conquista do prêmio máximo na Croisette por um filme brasileiro ganha ressonância especial neste ano em que O Agente Secreto, novo longa-metragem de Kleber Mendonça Filho, disputa a Palma de Ouro na seleção oficial do Festival de Cannes. A presença brasileira no festival francês em 2025 nos permite retomar aquele momento pioneiro para o audiovisual do país, que guarda outros ecos com o presente. Basta pensar no sucesso recente de Ainda Estou Aqui na arena internacional, uma vez que o filme de Walter Salles, exibido em sessão especial no Festival do Rio 2024, se tornou o primeiro longa-metragem brasileiro a conquistar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (também disputado por O Pagador de Promessas).

'Se tivesse de refazer o Pagador, não mudaria nada'

Anselmo Duarte com a Palma de Ouro conquistada por O Pagador de Promessas - Acervo UH - Folhapress
Anselmo Duarte com a Palma de Ouro conquistada por O Pagador de Promessas — Foto: Acervo UH/Folhapress

“Eu podia não ser um intelectual, mas nunca fui um analfabeto de cinema”, disse o laureado diretor ao jornalista Luiz Carlos Merten em entrevista para livro Anselmo Duarte – O Homem Da Palma de Ouro. Homem de origens simples no interior paulista, Anselmo dizia saber, desde menino, que não queria ser operário como suas irmãs. Ainda na infância, trabalhou como “molhador” de telas nos tempos de Cinema Mudo (uma maneira de manter a superfície resfriada e ampliar seu brilho). Diante das câmeras, sua carreira começou como figurante em It's All True (1942), projeto inacabado de Orson Welles no Brasil.

Antes de assumir o posto de realizador, Anselmo Duarte já havia desfrutado de prestígio comercial com uma carreira robusta como galã nos cinemas, com passagens por grandes estúdios do país, como a Cinédia, a Atlântida e a Vera Cruz, onde chegou a ser o talento com a maior folha salarial da companhia. É desta conexão com o cinema comercial, com as chanchadas e romances populares que eram tão rechaçados pelos intelectuais naquele momento em que o Brasil se modernizava com a bossa nova, Brasília e o Cinema Novo, que derivam as raízes dos conflitos de Duarte com os cinemanovistas e com parte da crítica especializada.


O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte — Foto: divulgação/Cinedistri Producao e Distribuicao Audiovisual Ltda

Após assistir Aquele Que Deve Morrer (1957), produção franco-italiana dirigida por Jules Dassin, Duarte apreciou o impacto narrativo de um filme que explora a força visual e narrativa das alegorias possíveis com a Paixão de Cristo. Fascinado com o texto de Dias Gomes, o cineasta adquiriu de adaptação de O Pagador de Promessas por 400 mil cruzeiros. “Quero filmar sua peça porque tenho absoluta certeza de que ganharei o primeiro prêmio do Festival de Cannes”, disse, convencendo o dramaturgo com sua determinação.

Entretanto, Dias Gomes só autorizou a produção do filme após negociar com o produtor do projeto, Oswaldo Massaini, uma cláusula que obrigasse Duarte a seguir o enredo da peça com fidelidade, algo que detratores apontavam como negativo à época. Dias Gomes também aprovou o roteiro final, que mantém muita fidelidade com o texto para o tablado, que havia vencido o Prêmio Nacional do Teatro, maior prêmio da dramaturgia da época.


O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte — Foto: divulgação/Cinedistri Producao e Distribuicao Audiovisual Ltda

“Procurava um tema. Quando vi a peça do Dias Gomes, tive a certeza de que aquele era o meu material. Até hoje acho que fiz o filme certo. Se tivesse de refazer o Pagador, não mudaria nada”, comentou Duarte ao jornal O Estado de S. Paulo em 1997.

A trama de O Pagador de Promessas gira em torno de Zé do Burro, um homem do sertão baiano que promete carregar uma cruz até a Igreja de Santa Bárbara, em Salvador, para agradecer pela cura de seu burro, gravemente ferido por um galho em uma noite de temporal. Ao cumprir a promessa, ele se depara com a resistência da Igreja Católica, que se recusa a aceitar o seu gesto por considerá-lo sincrético e incompatível com os dogmas da fé oficial, visto que o voto foi originalmente feito num terreiro de candomblé. “Na capela do meu povoado não tem Santa Bárbara, mas tem Iansã, que é Santa Bárbara”, ele diz, justificando-se para o padre que vê vaidade e heresia no sacrifício autoimposto.

Zé do Burro (Leonardo Villar, protagonista da peça original), inflexível com um quê de puerilidade, é acompanhado por sua esposa, a exausta e insatisfeita Rosa (Glória Menezes, em sua estreia nos cinemas), que o acompanhou por sua via-crúcis pessoal ao longo de sete léguas. Rosa é alvo das investidas do alcoviteiro Bonitão (Geraldo Del Rey), um cafetão que explora, com desdém e cinismo, a instável Marli (Norma Bengell). Outros personagens da trama incluem o intransigente Padre Olavo (Dionísio Azevedo), o jornalista sensacionalista vivido por Othon Bastos e o capoeirista Mestre Coca (Antônio Pitanga), que simboliza a solidariedade do povo à causa de Zé do Burro.

A bronca de Truffaut e a conquista da Palma de Ouro

O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte
O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte — Foto: divulgação

O 15º Festival de Cannes, realizado em 1962, teve o escritor e diplomata japonês Tetsurō Furukaki como presidente do júri, que naquele ano contou com François Truffaut entre os membros. Daquela premiação, uma das lembranças mais marcantes para o diretor foi justamente uma interação com o cineasta da Nouvelle Vague, que teve um acesso de fúria ao ser presenteado por Duarte com um disco de músicas brasileiras, rejeitando o presente, visto pelo francês como algo comprometedor ao seu cargo no conselho que avalia os filmes em competição. 

“Mas o Truffaut foi muito generoso”, ponderou o brasileiro. “No dia seguinte, passa o Pagador, termina a sessão e quem eu vejo me fazendo o sinal positivo do polegar, dizendo que o filme era o máximo? Truffaut. Naquele momento eu tive certeza de que poderia ganhar”, recordou, ao Estadão.


Anselmo Duarte é homenageado em Santos (SP) ao chegar ao Brasil com a Palma de Ouro — Foto: Acervo UH/Folhapress

Aquela intuição se confirmou. Ao retornar ao Brasil, a Palma de Ouro conquistada por O Pagador de Promessas foi recebida com tapetes vermelhos e multidões. O elenco foi festejado, desfilou em carros abertos. “Os locutores das rádios saudavam-me como se eu tivesse trazido mais um caneco para o Brasil”, contou Duarte, lembrando que no mesmo ano a seleção brasileira de Garrincha e companhia ergueu a taça Jules Rimet, sagrando-se bicampeã mundial no Chile.

“A memória maior que tenho dos bastidores de O Pagador de Promessas é a de um diretor feliz da vida, cantando em prosa e verso a certeza de que todos ganharíamos prêmios importantes. Anselmo foi um maestro que nos contaminou com muito entusiasmo e segurança. Ele tinha um visionarismo único”, comentou Antônio Pitanga, em entrevista recente para o Jornal O Globo.

Lenda viva do cinema nacional e dono de uma perspectiva privilegiada enquanto protagonista de carta maior do nosso audiovisual, Pitanga considera que o trabalho que venceu a Palma de Ouro em 1962 contribuiu para que as produções do país saíssem da esteira estilística do cinema norte-americano. “A partir do Cinema Novo e de filmes como O Pagador de Promessas houve um maior enfoque na brasilidade da dança, do corpo, do movimento, da maneira de ser, da capoeira, das religiões de matriz africana. Foi aí que despontou, então, um cinema diferente daquele do tipo ‘Matar ou correr’ ou ‘Carnaval no fogo’”, avaliou o ator na mesma entrevista citada anteriormente.

Desafetos e reavaliações


O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte — Foto: divulgação

O sucesso em Cannes, inédito e até o momento inigualado, não veio sem fricção. Os expoentes do Cinema Novo, que começavam a ganhar projeção (Cinco Vezes Favela, um dos marcos inciais do movimento, chegou aos cinemas no mesmo ano que O Pagador de Promessas) viam com desdém o apuro técnico e a estrutura formal do filme, que bebia das fontes do neorrealismo e do cinema clássico, sem a iconoclastia da Nouvelle Vague.

Glauber Rocha, que acompanhou as filmagens de O Pagador de Promessas e era próximo de Anselmo, tornou-se seu crítico mais notório. Ainda que o filme de Duarte tenha elementos fortes que o aproximam do ideário do Cinema Novo, como o protagonismo da cultura popular brasileira e a escolha pelo retrato dos excluídos, os cinemanovistas, que nunca deram credibilidade para o ex-galã, apontavam que o trabalho laureado com a Palma de Ouro era desconectado da urgência estilística radical defendida por eles e dotado de um viés excessivamente comercial.

O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte — Foto: divulgação
O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte — Foto: divulgação

Walter da Silveira, crítico de cinema que foi o único brasileiro que viajou à França para cobrir o Festival de Cannes de 1962, engrossava o coro crítico de sua categoria, mas de forma mais modesta. Considerava os filmes de Cacoyannis, Antonioni, Bresson e Buñuel superiores, deixando o patriotismo de lado. Detalhe importante: Silveira faz uma ponta em O Pagador de Promessas, vivendo o dono de um bar.

Entretanto, passado o calor da controvérsia, é possível dizer que os tempos de disputas divisivas passaram. Em 2016, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE) elegeu os 100 melhores filmes brasileiros, e O Pagador de Promessas ficou em nono lugar. O jornalista Walterson Sardenberg Sº, no artigo Anselmo Duarte, o galã que odiava ser galã relembra que Cacá Diegues foi “um dos raros diretores do Cinema Novo a reservar a Anselmo algumas linhas em seu livro de memórias”: “Quando Anselmo vinha ao Rio, estávamos sempre com ele, numa pré-estreia, na Líder [laboratório de revelação], numa mesa do La Fiorentina, na casa do [produtor e fotógrafo Luiz Carlos] Barreto, sempre rindo de suas histórias hilariantes”.

Dislene Cardoso de Brito, na tese de doutorado Falsos mitos e heróis vencidos em O Pagador de Promessas e O Bem-Amado: do texto dramático para a tela, articula que críticos da atualidade fazem uma leitura mais despreendida das dicotomias do passado do clássico longa-metragem. A autora considera que a análise feita por Maurício Gonçalves, na obra Cinema e Identidade Nacional: 1898-1969, faz mais jus ao legado do filme de Anselmo Duarte. Nesta visão, o projeto deve ser compreendido não em oposição ao Cinema Novo, mas como “filme de fronteira”, incômodo justamente por circular entre o cinema de estúdio e o gesto inaugural de um cinema brasileiro mais consciente de si.

Zé do Burro, o herói trágico

O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte — Foto: divulgação
O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte — Foto: divulgação

Além de denunciar a rigidez das instituições e expor o preconceito contra religiões de matriz africana, O Pagador de Promessas articula, com bastante clareza formal, o embate entre um indivíduo e as estruturas do poder. Em Zé do Burro — definido pelo crítico e teórico do teatro Anatol Rosenfeld como um herói trágico no mais pleno sentido da tradição — a figura do sertanejo sem instrução é elevada ao status de bastião da consciência moral, uma figura que pode iluminar toda uma cidade, ou até mesmo um país.

Ele não busca confrontar a autoridade apenas por um gesto de rebeldia, mas cumprir, com teimosia quase infantil, o voto que fez. E é justamente essa pureza de intenção que o torna intolerável diante da lógica institucional, que ridiculariza e até demoniza seu gesto. À medida que a Igreja, o Estado e a imprensa se organizam para contê-lo ou explorá-lo, vemos que sua recusa abre margem para o inevitável martírio que se desenha desde o começo.

A força do personagem está na sua recusa em negociar e na sua trágica incapacidade de compreender os jogos de poder do mundo real. A simplicidade de sua missão e a brutalidade de sua derrota constituem um comentário sobre angústias que ainda hoje nos afligem. Para Rosenfeld, a obra de Dias Gomes está repleta de figuras assim, com histórias abertas ao sublime, sensíveis à grandeza trágica e aos “aspectos frágeis e menos nobres da espécie humana”.

Perguntado sobre o motivo que fez O Pagador de Promessas vencer a Palma de Ouro em entrevista para a Revista Regional, Anselmo Duarte disse, sem modéstia, que o filme conquistou o júri por mostrar o melhor caminho para a humanidade e para a sétima arte. Quando o jornalista rebateu, questionando, então qual seria o melhor caminho para nossa espécie, o diretor disse: “A educação. É preciso fazer que as pessoas não lutem tanto para ter tanto dinheiro, mas sim para ter o necessário para sobreviver, sem ganância. A ganância destrói tudo.” Zé do Burro concordaria.

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