Publicado em 13/10/2023

Composto por 21 planos-sequência, o drama histórico A Batalha da Rua Maria Antônia resgata um episódio de emblemático da resistência estudantil ao regime militar com uma proposta estética que intenciona situar espectador dentro da ação segundo a diretora Vera Egito.

O longa-metragem nacional, que integra a mostra competitiva da Première Brasil, foi exibido em uma sessão seguida com debate no Cine Odeon nesta sexta-feira (13/10) com a presença da realizadora e equipe do filme. 

Vera Egito, que também é roteirista de A Batalha da Rua Maria Antônia, contou no debate mediado pelo crítico e curador Ricardo Cota que o desenvolvimento do projeto durou 13 anos. No processo de escrever e reescrever o roteiro, surgiu a ideia de estruturar filme em 21 tomadas contínuas. “A gente começou a entender que eu queria retratar em tempo real os momentos ali dentro, como se a gente estivesse ali dentro com eles.”

Os eventos reais que baseiam o filme se deram em outubro de 1968, às vésperas da assinatura do AI-5, quando estudantes de esquerda que ocupavam o prédio da Faculdade de Filosofia da USP enfrentaram os ataques do Comando de Caça aos Comunistas, organização paramilitar de extrema-direita que estava na Universidade Mackenzie, do outro lado da rua onde estava situada a instituição pública. Com paus, pedras, bombas e coquetéis molotovs envolvidos, a disputa terminou com morte de um estudante, invasão da PM no prédio da USP e transferência da Faculdade de Filosofia para um local mais distante do Centro de São Paulo.

“O filme é uma ficção inspirada em fatos reais. Eu estudei na USP e lá se fala muito nela [a Batalha da Maria Antônia, como o episódio ficou conhecido]”, conta a realizadora, que afirma que tomou liberdades criativas para desenvolver as figuras que movem a trama. “Os personagens são todos fictícios. Existem muitos personagens reais que os inspiraram, mas eu queria transformar a narrativa de maneira interessante dramaturgicamente, criar conflitos amorosos, criar as expectativas de cada um e não queria me comprometer com a biografia de ninguém.”

Durante o desenvolvimento do projeto, surgiu a ideia de filmar o longa-metragem em película de 16mm e em preto e branco, buscando uma sintonia com a estética do final da década de 1960 — o que trouxe um componente de tensão para a produção. Não há mais laboratórios que revelam película na América do Sul, por isso o material precisava ser enviado para países mais distantes. “A gente passou as quatro primeiras diárias sem ver o que a gente estava fazendo. Eu não dormia, o Will [Etchebehere, diretor de fotografia] não dormia. As pessoas que viam diziam que ficou lindo, mas eu não estava vendo nada”, recorda. 

Para a diretora, Will Etchebehere é uma espécie de “coautor” do filme por usar de sua experiência para executar a tarefa de rodar um projeto tão ambicioso. No o debate, o diretor de fotografia contou que mapeou a locação do filme por 20 dias para entender como iria rodar cada plano. A partir daí, separou as tomadas por nível de dificuldade de execução para organizar o planejamento das diárias. Ele conta ainda que a equipe chegava a fazer cinco horas de ensaio até que todos se sentissem confortáveis para a rodar as cenas do longa.

“Quando a gente vai rodar, a gente não pode errar. Não tem margem de erro. Quando você erra o plano-sequência, você joga ele fora. É um desperdício imediato. Então, quanto mais você ia chegando até o final do plano, mais você ia ficando nervoso”, explica.

Sobre o enredo do filme, a cineasta considera que a longa gestação do projeto a fez mudar de perspectiva diversas vezes sobre o impacto que o filme teria. Quando projeto começou a ser desenvolvido, às vésperas da eleição de Dilma Rousseff, a tônica seria mostrar que esquerdas no Brasil tiveram derrotas, mas se reergueram e venceram importantes disputas políticas. Entretanto, o cenário muda com impeachment de Dilma e posterior eleição de Bolsonaro. “A história continuou capotando e a gente perdeu. Vi que não é sobre ganhar ou perder. Perdendo ou ganhando, o jogo é continuar lutando. Essa turma não desiste e a gente também não desiste.”

Heitor Dhalia trabalhou com Vera em À Deriva (2009) e Serra Pelada (2013), quando ela assinou os roteiros dos filmes que ele dirigiu. Agora, o cineasta produz A Batalha da Rua Maria Antônia. Para o diretor, a ascensão da extrema-direita no cenário político ajudou a tornar o exemplo dos estudantes da USP retratados no longa mais relevante. 

Produtor executivo do longa-metragem e presidente da Ancine entre 2006 e 2017, Manoel Rangel elogiou o trabalho da diretora, que trouxe uma história com figuras femininas fortes e mulheres negras em papéis de destaque. “Vera tem sensibilidade para ir ao passado e o construir como quem entende o espírito dos tempos que a gente está vivendo, equilibrando relações entre homens e mulheres e a diversidade do povo brasileiro. Isso também é uma maneira de honrar as tradições dos movimentos estudantis. É uma das coisas que eu admiro no filme.”

Rangel também foi presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES) e contou que recordou de sua militância. “Numa sessão, me permiti desligar um pouco o lado produtor e a sensação que me veio foi a sensação de um militante do movimento estudantil. Essa sensação foi absolutamente poderosa para mim. Este é um filme que nós entregaremos a União Nacional dos Estudante, a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas e a todos os centros acadêmicos, grêmios e entidades de estudantes para que eles carreguem por aí. Essa força e essa energia que a gente viu nas telas é a energia da juventude brasileira, a energia dos estudantes. O despojamento e a entrega desses estudantes que se lançam em batalhas têm um significado potente de transformação.”

Texto: João Vitor Figueira
Foto: Ian Melo



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Edição 2023