Publicado em 09/11/2018

por Ricardo Vieira Lisboa 


Apanhámos um táxi para o MAM - Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Chegámos junto de um edifício enorme, construção brutalista feita de abas de betão, como costelas da caixa torácica de um gigante caído. A degradação é evidente: não há dinheiro nem pessoal para manter de forma digna a monumentalidade daquele espaço. Os possíveis espectadores são poucos, os sofás comidos pelo uso, as poltronas chiam, não se encontra ninguém para nos dar indicações, acumulam-se programas de ciclos que por ali passaram faz meses ou anos. Mas acima de tudo o cheiro: um complexo perfume que mistura, em proporções variáveis, o mofo com a tosta mista [misto quente aqui no Brasil] queimando no bar. Perfume característico dos locais do passado, por onde ainda subsistem os resistentes de um outro tempo. As cinematecas costumam ser assim, espaços fúnebres onde o peso bolorento dos fantasmas é interrompido pelas pausas para o lanchinho.

E quem são afinal estes indivíduos – onde me incluo – que aguardam, silenciosos, pelos cantos? Os cinéfilos. Vampiros históricos alimentando-se de imagens doutras épocas (e de chopps também) e encontrando na tela o espaço de reflexão entre si e os outros. Andrew Sarris tem uma boutade (que gosto de citar) que afirma o cinema como simultaneamente um espelho e uma janela, só não disse que esse espelho também servia para encontrar, de forma indirecta, o outro... cinéfilo amigo. O cinema como língua comum de uma comunidade que constrói o seu imaginário com imagens de outros (mas logo suas, pelo olho que tudo filtra e tudo resignifica). A tela, qual lençol em tensão, é também um objecto de ressalto de nós – e aproveitando o trocadilho que as palavras me convocam, é também um lençol em tesão, um objecto de assalto, cama de mil fodas, onde o cinéfilo pratica a promiscuidade com os filmes em intermináveis orgias. É um trampolim que repele, com igual intensidade, tudo o que lhe lancemos. E portanto o cinema é, para o cinéfilo, um espaço de intimidade (porque ao cinema oferecemos a nossa  intimidade), um espaço de afecto (porque ao cinema oferecemos o nosso afecto), um espaço de alegria, amor e fantasia, mas também de revolta, incómodo ou raiva. No fundo, um espaço que nos catalisa, é certo, mas também um espaço que nos en-forma e re-forma.

Alma Corsária

O encontro dava-se em redor de um filme e de uma efeméride: a revista Contracampo celebra 20 anos da sua fundação e para isso alguns dos seus editores decidiram exibir (entre outros filmes) Alma Corsária (1993) de “Carlão” Reichenbach. Um filme de um amigo, um realizador cinéfilo (ou de um cinéfilo realizador), onde o cinema enforma os personagens e onde as memórias de ver “Sam” Fuller no cinema de bairro, em criança, se reencenam para uma espécie de “vingança do imaginário”. Mas também onde toda a nostalgia se desfaz em cachaça, em desgostos amorosos, em conflitos políticos e na força aniquiladora do capitalismo que transforma os antigos cinemas em salões de baile, lojas de roupa ou parques de estacionamento. Foi portanto uma escolha adequada à situação, ao espaço e à parca audiência, composta maioritariamente por... amigos (da casa). O filme como desculpa para, pelo menos, re-unir amizades distantes. Até a materialidade do objecto estava decadente, era suposto que a projecção fosse numa cópia de 35mm mas descobriu-se que uma das bobinas não estava em condições de ser exibida e portanto teve que se optar pela cópia digital. As coisas decaem, isso é inevitável. Só nos resta cantar as suas ruínas.

É isso que faço nestas linhas. Como é isso que tanto se vai fazendo: vasculhar na história do cinema, mergulhar no lixo do passado, chafurdar nas preciosidades de outrora à procura de novos significados. Esse é um dos meus grandes prazeres: debruçar-me sobre os arquivos, desencantar um artigo de jornal perdido numa edição diária de há 80 anos, ver um filme esquecido à luz de um conhecimento recente, imaginar um filme perdido ou preencher as lacunas doutro fragmentário. Essa obsessão  é própria de fins civilizacionais: o barroco como o canto de cisne extravagante de um qualquer auge. Não me parece portante meramente casual que, nos últimos anos, se tenham produzido tantos filmes sobre filmes, ou melhor, tantos documentários sobre a história do cinema, em particular sobre a carreiras de realizadores. Em Portugal isso é muito evidente: em mais de cem anos de cinema português existiam, tanto quanto me lembro, um documentário sobre Manoel de Oliveira realizado por Paulo Rocha e um documentário sobre Paulo Rocha realizado por Saguenail e Regina Guimarães (e dois títulos de produção semi-televisiva sobre António Campos e Fernando Lopes – e claro, o filme de Pedro Costa sobre o casal Straub-Huillet); nos últimos dois anos estrearam Lupo (2018) sobre Rino Lupo, Nasci com a Trovoada (2017) sobre Manuel Guimarães, Quem é Bárbara Vigínia? (2017), Silêncios do Olhar (2016) sobre José Álvaro Morais e Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo (2016).

Encruzilhada mortal

Para além da economia da memória, que favorece estes objectos, parece-me que o fenómeno prende-se mais com aquilo que vinha descrevendo antes: uma vontade de perspectivar o cinema, agora que este se encontra numa encruzilhada possivelmente mortal de formas novas de produção, distribuição, visionamento e mesmo reflexão. Há portanto uma vontade de súmula, como quem antecipa que o fim está próximo e é necessário começar a embrulhar o presente – nos dois sentidos da expressão. No Festival do Rio, como aliás é cada vez mais comum em quase todos os festivais de cinema, existe uma secção própria dedicada a este tipo de objectos, aqui chama-se Film Doc, e contou este ano com títulos sobre William Friedkin, Alice Guy-Blaché, Orson Welles e Hal Ashby (o mais banal dos quatro). Houve também um documentário sobre o brasileiro Humberto Mauro, na secção Premiere Brasil, e outros dois documentários mais poéticos, sobre as memórias do cinema, o da portuguesa Teresa Villaverde “sobre” o realizador italiano Tonino De Bernardi feito diário de umas férias de verão e o mais recente título de Guy Maddin – com Evan Johnson e Galen Johnson –, esse realizador mediúnico que sempre levou à letra a expressão “séance de cinéma”, ambos na secção Panorama do Cinema Mundial.

Mas tudo isto se complexifica mais ainda quando alguns destes cineastas, nomeadamente Welles e Friedkin foram já cineastas que pensaram, através das imagens em movimento, o próprio cinema e a sua história: "Billy" realizou Fritz Lang Interviewed by William Friedkin (1975) e Orson fez, além do prestidigitador F for Fake (1973) o essencial Filmin Othello (1978). De facto, ambos os realizadores dos documentários sobre estas duas grandes figuras do cinema norte-americano dão especial atenção a estes filmes. Francesco Zippel, do primeiro, apresenta-o como uma espécie de vénia, colocando Lang como mestre espiritual de Friedkin (esquecendo, no entanto, as lições de cinema desse filme – o tempo, a duração, a pobreza produtiva de uma simples conversa). Já Mark Cousins encontra na fase final da obra de Welles um reflexo do seu próprio trabalho analítico audiovisual mas nunca esquecendo a componente mitificadora e mitologizante desses filmes. São, de certa medida, histórias dentro de histórias do cinema, onde cada esfera de historiografia acrescenta camadas de consciência sobre a natureza construída desse conhecimento – como afirma Friedkin a certa altura, quero "desmitificar toda a bullshit que se escreve sobre o cinema e os cineastas".

Cinema desktop

E o epíteto dessa consciência histórica é, como seria de esperar, o processo de investigação e reavaliação da figura e do percurso de Alice Guy-Blanché. Be Natural: The Untold Story of Alice Guy-Blaché (2018) resulta de um trabalho (tão fundamental quanto manipulador) de Pamela B. Green na revisão dos documentos e dos testemunhos sobre a pioneira do cinema que foi, com o passar dos anos, reduzida a uma nota-de-rodapé incorrecta e infinitamente replicada (depois de ter sido um dos nomes mais importantes do início do cinema no final do século XIX e início do século XX e ser autora de filmes inaugurais sobre feminismo, homossexualidade ou mesmo do primeiro filme cujo elenco era composto apenas por pessoas negras). A força do documentário não está certamente na sua contribuição para o género cinematográfico, pelo contrário, está sim no modo como se constrói sobre a própria investigação - processo de prospector garimpeiro que percorre o mundo em busca de caixotes perdidos no armazém de um qualquer descendente despreocupado. Sendo que essa volta ao mundo em busca de documentos (fotografias, cartas, audio de entrevistas nunca publicadas, entrevistas em vídeo encarceradas em formatos proscritos e mesmo filmes tidos como perdidos) se faz, nem mais nem menos, através da Internet. B. Green trabalha segundo o modelo do desktop cinema cosendo entrevistas por Skype, clips de som enviados pelo WhatsApp, pesquisas rápidas de moradas e contactos telefónicos no Google, etc. É pois um processo que renova a esperança nas possibilidades do mundo digital em rede e demonstra que o acesso à história do cinema (e à História, e ao Cinema) não se prende, afinal, necessariamente em calabouços mofentos com cheiro a misto quente.

Alguém comentava, no outro dia, que os cinéfilos eram como os mosquitos que se concentravam em redor de uma luz, só que no nosso caso essa luz era a do projector de cinema. Filmes como o de Pamela B. Green tratam de apontar esse foco luminoso nas partes escuras da história do cinema. O cinema iluminando-se, como esfera de espelhos numa discoteca, estilhaçando a luz numa malha pontilhista, cheia de falhas mas também cheia de brilhos. Já Humberto Mauro – no final do belo filme realizado pelo seu neto – lapida, “cinema é cachoeira”. Também porque o cinema pode ser um(a) torrent(e), que nunca pára, que se renova sempre, imparável: espaço da perpétua renovação.




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