Publicado em 15/10/2023

Antes do início da conversa que encerrou as sessões da Première Brasil Debates no noite do último sábado (14/10), a diretora Lillah Halla propôs uma dinâmica inédita para o público que acompanhou drama Levante em um Cine Odeon - CCLSR lotado.

A cineasta pediu para que as luzes da sala fossem apagadas e para que a plateia pudesse responder duas perguntas de forma anônima. A diretora então questionou quem já tinha vivido uma situação similar à representada no longa-metragem sobre uma jovem que tenta encontrar maneiras de interromper uma gravidez indesejada. Neste instante, algumas luzes se levantaram. Logo após, questionou se alguém conhecia uma pessoa próxima que viveu situação parecida. Aí, então, um mar de celulares com lanternas acesas se ergueu.

Refletindo uma urgência de debater o tema do aborto como uma questão de saúde pública, para além do moralismo, a equipe de Levante ergueu a bandeira do direito à justiça reprodutiva — indo além do sentido figurado. O elenco do filme levou para o Cine Odeon uma faixa com os dizeres “Aborto legal, seguro e gratuito para todes”, exposta diante do palco durante o debate.

“O filme mostra que violento não é o procedimento, é a falta de acesso a esse direito. O filme mostra a violência promovida pelo Estado que se ausenta e pelo fundamentalismo que faz terrorismo psicológico nessa personagem”, comentou Vitória Régia da Silva, jornalista, escritora e ativista que atua como gerente de jornalismo e vice-presidente da Associação Gênero e Número e mediou o debate no Odeon. 

Para a jornalista, Levante é uma obra propositiva que se trata do tema do aborto de maneira franca, trazendo argumentos para um debate no campo da cultura. “A gente precisa começar as conversas e não só responder ao fundamentalismo e ao retrocesso. Temos que começar nossas conversas nos cinemas, nas nossas casas e famílias”, disse. Tratado como tabu, o tema do filme dialoga com o fato de que o aborto é tratado de maneira velada na sociedade, apesar de muitas pessoas terem passado pela experiência em função da criminalização. Vitória Régia então citou dados que apontam que boa parte dos procedimentos são feitos em mulheres que já tem filhos e que professam alguma religião, citando também que o aborto ilegal é uma das maiores causas de mortalidade materna no país.

A atriz Ayomi Domenica interpreta Sofia, protagonista de Levante. A personagem é uma jovem negra de 17 anos, estrela de um time de vôlei da treinadora Sol (Grace Passô), que está diante de uma chance importante para o seu futuro no esporte. Sofia, porém, descobre uma gravidez indesejada e inicia uma busca por um aborto clandestino, o que a coloca na mira de um grupo fundamentalista. Para lidar com essa situação, a personagem conta com a fraternidade e o apoio incondicional do time, formado por pessoas queer que nutrem uma amizade inseparável.

Domenica diz que após a sessão de Levante no Odeon se impressionou ao ver um pai celebrar o filme junto com suas filhas adolescentes. “Eu, com 13 anos, não tinha essa conversa com ninguém, nem com minhas amigas”, conta a atriz, que também defende que o assunto não pode ser pautado apenas por vozes conservadoras que querem interditar qualquer conversa sobre descriminalização e legalização do aborto no país.

Na trama, as adversidades que Sofria enfrenta seriam ainda mais difíceis sem o suporte da rede de apoio formado pelas pessoas que a amam. Para a atriz, esta mensagem é uma das principais mensagens de Levante. “Filme mostra que existe salvação através do afeto”, pontua Domenica. “Que isso possa de alguma forma contaminar os nossos desejos e forças de luta política. A política também se faz através do afeto. Isso alimenta a nossa força, a nossa potência social enquanto cidadãos e cidadãs que podem modificar alguma coisa no nosso país.”

A diversidade de expressões de gênero apresentada pelo elenco que compõe a equipe de vôlei foi comemorada por Vitória Régia. “No Brasil, quando a gente fala de aborto, a gente tende a fazer um discurso muito cisgênero e heteronormativo e que bom que o filme trouxe outros corpos para trazer essa temática, outras identidades, porque todos esses grupos são impactados pela criminalização do aborto.”

A primeira exibição de Levante ocorreu na noite de sexta-feira (13/10) no Estação NET Gávea, na véspera do debate no Odeon. Domenica disse que foi “revolucionário” lidar com a reação do público e ouvir relatos sobre aborto, conversas das quais ela se absteve durante o processo de produção do filme porque “não quis me alimentar de outras histórias para não confundir como seria a minha história como personagem”.

Levante foi exibido na Semana da Crítica no Festival de Cannes deste ano e foi premiado com o Prêmio FIPRESCI.

Texto: João Vitor Figueira
Fotos: Ian Melo



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Edição 2023