Publicado em 22/09/2016

Mais um filme está confirmado na grande festa do cinema carioca de 2016: o documentário One More Time With Feeling, que acompanhou os bastidores da gravação do novo álbum do australiano Nick Cave e sua banda, Bad Seeds, já é sucesso garantido de bilheteria no Festival do Rio 2016. Acompanhado pelas lentes do diretor Andrew Dominik, o filme revela um Nick Cave como seus fãs nunca viram, um Nick Cave desconhecido até dele mesmo. Tudo por conta do redemoinho de sentimentos provocados no músico pelo acidente que matou um de seus filhos gêmeos: Arthur, de 15 anos, despencou de um penhasco na cidade inglesa de Brighton, deixando toda a família numa espiral de depressão. Assim, o que seria o documentário dos preparativos para a entrada no estúdio tornou-se um divisor de águas na trajetória de um dos músicos mais influentes da cena pós-punk.

Filmado entre a dor lancinante pela morte de seu filho e a luta feroz pela criação de um album de canções inéditas, que ganhou o nome de Skeleton Tree, o filme se constrói entre sessões no estúdio, flagrantes de performances ao vivo, entrevistas e improvisos de Cave. O resultado é impactante. O diretor é amigo de infância do músico e tem com ele intimidade e cumplicidade para compreender um momento extremamente delicado. 

Cave rumina melancolia e música enquanto grava Skeleton Tree com a banda Bad Seeds. E, entre uma entrada e outra no estúdio, vai desfiando histórias de personagens estranhos, todos às voltas com a perda de alguém que se ama e cuja ausência revira o mundo ao redor, como um imenso buraco negro. Cave parece espectador de si mesmo: reflete, incansável, sobre o abismo da saudade do filho morto, tomado de perplexidade e gratidão pela presença do irmão gêmeo sobrevivente da tragédia, Earl, que o ajuda a enfrentar a dor.

One More Time With Feeling é exatamente isto: um documentário que transborda emoção. O sentimento de que fala o título deste filme é de devastação. Melancolia arrasadora. Mas é ao mesmo tempo a raiva surda contra o destino, que faz com que a música de Cage se transforme em sonoridades inéditas. A raiva move tudo ao redor, é uma outra face da tristeza, o momento em que ela faz a dobra e se revira nas entranhas do compositor para dar o tom de uma das melhores produções musicais da trajetória de Nick Cage e sua banda. 

A certa altura, Cage se pergunta: “Como foi que eu me tornei alguém que inspira pena nos outros?” E observa que, no universo, os buracos negros, que arrastam consigo tudo ao redor, são pontos de alta concentração de matéria. Assim, sua música também gira entre pesos e contrapesos, e ganha uma intensidade inédita. Skeleton Tree, a canção que encerra o album, tem um arrepiante coro de vozes que repete o mantra: “I’m calling you”, como quem experimenta as mais inesperadas tonalidades para chamar alguém que se foi. Um adeus relutante de um pai para seu filho que, como afirmou Mark Mordue, o critico do jornal The Guardian que está escrevendo uma biografia de Cave, lembra Knocking on Heaven’s Door, de Eric Clapton, canção que também foi escrita em circunstâncias igualmente trágicas. 

O documentário acompanha as dúvidas de Cave, sua melancolia, e também todos os seus movimentos em busca de saídas. O resultado é testemunho do processo criativo de uma dos gênios da cena musical contemporânea. Skeleton Treeo 16.o album da trajetória de Cave e da banda Bad Seeds já foi aclamado pela crítica especializada como um dos seus trabalhos mais refinados. A qualidade musical de Cave e a ousadia do músico em expôr sua alma para o filme _ que tem também cenas com o filho de 16 anos, Earl, e com a mulher, Susie Bick _ mostram que o processo de criação é uma luz no fim desse imenso túnel da melancolia. O documentário, em sua parte final, revela um Cave mais afetuoso, mais leve, mais tolerante e muito mais sábio, sobretudo quando se trata de sua arte. Sua música tem delicadezas e sutilezas de arranjo e de tratamento sonoro que repercutem no filme de Andrew Dominik, especialmente quando o 3D faz com que a plateia se sinta dentro do estúdio, ao lado dos músicos. One More Time With Feeling é um presente para quem se emociona com os poderes transformadores da música. 


ONE MORE TIME WITH FEELING 3D

(One More Time with Feeling)

de Andrew Dominik. Com Nick Cave. Reino Unido, 2016. 112min, DCP.

Inicialmente pensado apenas como registro de uma performance musical, este filme alcançou um novo formato, repleto de significados, ao acompanhar o contexto trágico de composição e gravação do álbum One More Time With Feeling, do músico Nick Cave e sua banda The Bad Seeds. Intercalando performances ao vivo com a primeira execução de novas canções e entrevistas, o material tem como guia uma narração intermitente, reflexiva e de improviso do próprio Cave. O resultado é um tributo a um artista que tenta encontrar seu caminho através da escuridão. 



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