Publicado em 03/11/2018

Por: Álvaro André Zeini Cruz

Silêncio: “ausência completa de som ou de ruído; calada”. A escolha pelo plural – Los Silêncios – não é aleatória na intitulação do filme de Beatriz Seigner; os silêncios que constituem a obra são díspares e diversos. No som, por exemplo, há uma contração da fala e da música em prol dos ruídos da noite, dos insetos, sobretudo. Na encenação, um silêncio espacial é dado pelo isolamento da ilha onde a história se passa, bem como pelo esporádico alagamento das palafitas, que dissolve parte das arquiteturas e dos corpos. Na narrativa, há o silêncio das autoridades e do poder diante dos conflitos armados que cercam a tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. Há também o silêncio da menina Núria, paradoxal, uma vez que, embora calada, ela permanece um estrondo imagético.

Núria chega à ilha com a mãe, Amparo (Marleyda Soto), e o irmão caçula, Fabio. Lá, eles reencontram o pai, Adão (Enrique Diaz). Mas nem tudo é o que parece, algo que o filme revela sorrateiramente. A menina é o cerne desses silêncios, a começar pela influência que exerce sobre a câmera e sobre os planos. Núria encara demoradamente o mundo a sua volta e esse mundo parece devolver-se no mesmo ritmo.

Assim, o plano, enquanto unidade temporal, é silencioso, porque os cortes são econômicos e de uma precisão cirúrgica, que omite qualquer tilintar de lâmina. O mesmo vale para a espacialidade, pois, ao evitar as engrenagens de locomoção, o olhar não vasculha, se fixa e espera os desdobramentos do mundo, seja ele físico ou metafísico.

É nesse registro do mundo que os silêncios são testados. Núria, em certa cena, rasga a noite mal iluminada. A garota calça tênis fluorescentes, que surgem como uma fagulha em meio ao breu. Adiante, numa reunião sobre os lutos e as lutas, os figurinos brilham para o clímax emocional do filme. Finalmente, os adereços e a pintura indígena reluzem num ritual sobre as águas em que já não existe espaço além dos corpos. 

As escolhas de Seigner para compor esse mundo espiritual remetem a filmografias distantes, como a de Apichatpong e Kiyoshi Kurosawa. Mas esse contraste entre corpos reluzentes e espaços sombrios, evoca outro título, também distante, mas também sobre infância, guerra e morte: O túmulo dos vagalumes, animação japonesa de Isao Takahata, de 1988. Pois é disso que se trata: corpúsculos luminosos que brilham e zumbem contra a escuridão silenciosa que, historicamente, cerca os pobres da América Latina.




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