Publicado em 14/10/2017

ENSAIO

Texto de Sérgio Raimundo

Na dinâmica do mundo actual – crises sociais, convulções políticas, escândalos económicos e financeiros e uma onda de corrupção soprando em toda a parte do planeta –, muitas vezes esquece-se do próprio humano. A mente motora de tudo. Buscar a história, revelá-la, interpretá-la e reinterpretá-la constitui uma actividade de grande interesse, pois pode nos facilitar a (re)definição de nós mesmos. O caminho a tomar e as soluções a inventar para sobrevivermos a escala mundial.

Há no cinema, através da luz, som, cenas, espaço para a apresentação e representação da história humana. O cinema é um arquivo histórico que não só limita-se a conservar a história, mas movendo-a de acordo com o presente, os contextos e as contingências sociais determinadas. Quando o cinema atravessa a história proporciona um “conhecimento pela arte”, pois mistura as múltiplas possibilidades do vivido com a razão e o sentimento. Basta, por exemplo, revisitar-mos Círculo de Fogo (2000), de Jean-Jacques Annaud, para compreendermos a tensão militar vivida entre a Rússia e a Alemanha na 2ª Guerra Mundial. Trata-se dum filme que, ao combinar de forma arrazoada de drama e suspense, refaz a Segunda Guerra Mundial a partir da perspectiva do soldado russo e Vassili Zaitzev.

Chegamos, pois, ao contexto do Festival do Rio e às ficções e documentários que alcançam essa possibilidade de reescritura e reinterpretação da história, iluminando o presente e o futuro. A começar por Crânios do Meu Povo (Skulls of my people, 2016), de Vincent Moloi,  uma produção que, narrando o genocídio de Namíbia de 1904, encena homens ligados aos exército alemão a recolher todos crânios espalhados pelo país, enviando-os para a Alemanha com o fim de serem estudados e analisados para determinar “cientificamente” os seus “modelos” raciais. Entretanto, após a passagem de cem anos o povo bantu, herero de Namíbia, levanta uma ressurreição que tem como objectivo obrigar os alemães a trazer de voltar os crânios ora enviados. Moloi,servindo-se da livre adaptação para além da realidade histórica, procura despertar a empatia do espectador, trazendo à tela o sofrimento da tribo que é fuzilada sem escrúpulos por armamentos tecnologicamente avançados.

Da Namíbia saímos em direção ao Paraguai por meio de Exercícios de Memória (Ejercicios de Memoria, 2016). Conduzido com delicadeza, mas de maneira firme, o documentário da diretora Paz Encina retoma a longa ditadura que o Paraguai viveu entre 1954 e 1989. A memória intercala-se neste filme para a compreensão do desaparecimento de Agustín Goiburú, oponente político do regime de Stroessner, em 1976 no Paraná, província de Entre Ríos, Argentina. Três filhos de Goiburú são convidados a voltar ao local onde seu pai foi visto pela última vez.

Encina nos mostra a relação inevitável entre memória e passado, jogando a reflexão para o presente. A recuperação dum afecto que se quer perder no tempo entre filhos e pais é um dos episódios de Exercícios de Memória que não cai num sentimentalismo fácil. A diretora registra a situação com respeito e sensibilidade.

O longa exprime a consciência de que o dar a ver, no contexto da história em questão e dos atravessamentos dos personagens envolvidos, é delicado: trata-se de uma visão do passado, de um político, contudo observada através dos olhos dos filhos. O desamparo que sentem quando perdem seus pais, o vazio que isso lhes cria, a dor e a misticidade da morte são elementos potentes do longa de Encina.

A história de Paraguai é contada por pessoas que não adoptadam um macro-discurso, mas procuram por si só ascender a um posicionamento próprio. Crânios do Meu Povo e Exercícios de memória são, em conjunto, narrativas que procuram dialogar sobre a história; e o fazem construindo um estilo caracterizado por uma constante busca de uma forma visual não só elucidativa, mas imaginativa e que almeja reencenar e reconstruir os factos.

Os 67 minutos de Crânio do Meu Povo e os 72 minutos de Exercícios de Memória são uma experiência do registo cinematográfico da história. Uma Alemanha colonista, cruel e, em última instância, assassina; uma ditadura perseguidora, sem dúvida assassina e silenciadora é denunciada pelo primeiro filme. Os laços são visíveis. “A ambição humana quando é extrema e sem limites no campo político leva ao próprio fracasso do homem” – talvez seja a frase certa para agrupar os dois filmes numa mesma perspectiva de análise crítica. A imagem histórica que se usa nos dois filmes refaz cenários sociais diversos, mas ambos afectados negativamente por uma política fundamentalista.




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