A plateia fantasma Em seus novos curta e longa, Bertrand Bonello questiona a condição do espectador de cinema
Por Cesar Castanha (Talent Press Rio)
Em 1881, Sarah Winchester, viúva de William Wirt Winchester (herdeiro de uma fábrica de rifles), convencida de que espíritos a matariam caso ela concluísse a construção da mansão na Califórnia iniciada pelo marido, deu continuidade à obra por 38 anos, ininterruptamente. O resultado de seu medo é hoje um ponto turístico: a Winchester Mystery House, com uma série de corredores e escadas que não levam a lugar nennhum.
Sarah Winchester, a ópera fantasma — curta-metragem do cineasta francês Bertrand Bonello que tem introduzido o longa Nocturama, do mesmo diretor, no Festival do Rio— apresenta personagens (compositores, músicos e dançarinas) que lutam para concluir uma ópera sobre a casa inacabada. Formando uma boneca russa de obras incompletas, o próprio curta-metragem parece ter também seus próprios corredores “para lugar nenhum”, ainda que leve, potencialmente, a uma assombrosa sensação estética.
É algo que faz parte da consciência que Bonello parece ter da experiência cinematográfica, do efeito de se estar na sala de cinema e observar, da escuridão, uma projeção luminosa. Bonello faz com que Sarah Winchester nos encare de volta, como que fôssemos encontrados pelo filme, mesmo estando escondidos no escuro. Certamente, é de uma habilidade imensa tornar essa sensação possível em um filme curto, mas deve se levar em consideração que este é, por exemplo, um dos motivos porque o gênero do horror ainda encontra espaço nos cinemas de multiplex.
Ser encontrado pelo filme me parece uma das sensações da experiência na sala de cinema almejadas pela cinefilia (e aqui quero ampliar a definição de cinefilia para uma que vá além da busca pelo cinema cânone e possa incluir, por exemplo, o imenso grupo de adoradores do cinema de horror). No belíssimo livro Diante da imagem (2013), o filósofo Georges Didi-Huberman fala justamente da maneira que a arte nos olha e como, ao fazer isso, nos perturba, por revelar a dimensão de sua obscuridade: “O que nos atinge imediatamente e sem desvio traz a marca da perturbação, como uma evidência que fosse obscura”. Nesse sentido, há sempre algo sobre a arte e nossa relação com ela que está fora do nosso alcance. E os dois novos filmes de Bonello carregam em si essa revelação de um mistério, característica que já fazia de alguns dos filmes anteriores do diretor, como L’Apollonide e Cindy: The Doll is Mine.
Talvez seja possível dizer que a história de Sarah Winchester carregue por si mesma esse impacto causado pela sensação de “não saber”, e que alcançar isso como um filme, portanto, não seria tão difícil nesse caso. Ainda assim, deve ser levada em consideração a habilidade do diretor de conectar as obras — ou mesmo os seus retalhos, considerando que nenhuma delas se fecha em uma única obra resolvida e acabada — e encontrar, a partir dessa costura, um mesmo grandioso e indescritível mistério, e colocá-lo diante de nós na sala de cinema.
É a partir desse ponto que, acredito, Bonello é bem-sucedido em transcender o filme como objeto. Ao apresentar uma obra inacabada, o diretor nos convida a nos engajarmos em sua construção. Bonello nos dirige, transformando a sala de cinema em uma plateia fantasma de uma ópera fantasma, ou nos próprios espíritos que assombravam a mansão Winchester e obrigavam a viúva a dar eterna continuidade à obra.
Trata-se, na verdade, de uma característica constante dos seus filmes, que neste é levada ao extremo. Em L’Apollonide, essa característica tem um efeito um pouco assustador — e que, acredito, é revelado pela repulsa com que alguns críticos responderam ao filme — quando somos colocados entre os consumidores do bordel onde a história se passa. Não é, exatamente, que Bonello aqui nos exponha ao nosso próprio voyeurismo, mas sim que ele nos encontra agindo como voyeurs. No próprio ato de assistir ao filme — horrorizados ou não diante do que vemos — estamos também consumindo aqueles corpos femininos torturados.
*
Esse é um dos motivos porque acho perfeitamente razoável que Nocturama tenha tido sua estreia adiada devido aos atentados de Paris do final de 2015. O filme corria o risco de repetir a experiência problemática de L’Apollonide, transformando espectadores em consumidores de imagens do terrorismo, numa Paris ainda em luto. A sua trama apresenta um grupo de jovens de diferentes origens que organizam — por motivos que nunca ficam muito claros — uma série de atos terroristas pela cidade. A proposta dos personagens parece ser a de um terrorismo clean, que se justifica pela força e a violência das imagens que produz, como a estátua de Joana D’arc em chamas. Depois de um primeiro ato em que circulam pela cidade cumprindo pequenas e incompreensíveis tarefas, os personagens se reúnem em uma loja de departamentos para a conclusão de seu plano, ainda oculto para o espectador.
É bom que o filme tenha tido algum tempo para reduzir os ruídos que os ataques terroristas reais a Paris poderiam causar sobre ele. Eventualmente, precisamos nos perguntar se o tipo de sensação estética que L’Apollonide nos impõe é moralmente correta. Se temos o direito de consumir aquelas imagens, apesar de sua violência. Mas Nocturama, diferente dos anteriores, expõe a estrutura que nos transforma em sádicos consumidores, e os personagens, em manequins.
Uma vez que estamos com os personagens na loja de departamentos, o filme assume a operação que se repete a cada obra de Bonello. Uma sequência de performances e pequenos espetáculos se desenvolvem diante de nós, mas o convite para nos engajarmos agora como consumidores não poderia ser mais claro — afinal, estamos em uma loja de departamentos. É nisso que se configura o apoteótico momento em que um dos personagens canta My Way. Se você se entrega a contemplar, deslumbrado, essa performance, está reconhecendo e aceitando, possivelmente com entusiasmo, o seu próprio papel de consumidor no filme.
Expondo para nós a estrutura que nos coloca como consumidores e desumaniza os personagens, e tendo nós mesmos aceitado fazer parte dessa estrutura, Nocturama estabelece o terreno para o golpe final. Na última sequência do filme, voltamos à mesma posição de voyeurs que ocupávamos em L’Apollonide. E a cena final é mais uma performance, mais um espetáculo à nossa disposição.
A grandeza de Nocturama, para mim, está na maneira como o filme dispõe retalhos de uma obra inacabada e inconclusiva tanto ao que ela diz quanto ao que ela é. Somos, como sugere Didi-Huberman, atingidos por essa inconclusão, pelo que não sabemos e não saberemos sobre esse filme. As lacunas deixadas por esse não saber, de certa maneira, denunciam a nossa tarefa de dar continuidade à construção da obra. Daí, talvez, venha a loucura da viúva de Winchester.
Voltar