Publicado em 15/10/2016

Por Sabrina D. Marques (Talent Press Rio)

1. Aparência de realidade

Robert Doisneau: Through the Lens (Doisneau: le révolté du Merveilleux),de Clémentine Deroudille, e Mapplethorpe: Look at the Pictures,de Fenton Bailey e Randy Barbato, trazem ao Festival do Rio 2016 olhares muito distintos sobre os processos de dois fotógrafos tão diferentes como Robert Doisneau (1914-1994) e Robert Mapplethorpe (1946-1989) – e o curioso é que, subitamente, estes surgem-nos mais próximos do que nunca. As perfeitamente encenadas fotografias de estúdio que celebrizaram Mapplethorpereúnem-se com as perfeitamente encenadas fotografias de rua que celebrizaram Doisneau, num projeto geral de mîse-en-scène que, por sua vez, os aproxima do método cinematográfico.

2. Doisneau: a desconstrução do método

Chegamos a um dos mais sonantes nomes da história europeia da fotografia, Robert Doisneau, por meio de um retrato íntimo realizado pela neta. E se é comum que nos surja apresentado como fotógrafo do inesperado, por capturar a agitação das ruas de Paris, ou como fotógrafo do amor, por ter guardado algumas das imagens que melhor construíram a aura romântica da Paris que habitava, este ‘‘maravilhoso’’ em que participam as suas imagens é, na verdade, um valor menos encontrado e mais construído.

Autor de algumas das mais icónicas fotos do século XX, Doisneau inscreveu o seu legado num lugar indefinível que – para usar a bela expressão de Manuela Penafria – se poderia apelidar de documentira. Susan Sontag poderá ajudar-nos a perceber o que não nos é imediatamente óbvio: ‘‘As fotografias guardam detalhes. Por isso, as fotografias parecem-se com a vida’’. É, por isso, fácil ao espectador confundir a qualidade inesperada das fotografias que observa com documentos raros capturados no agudo instante de uma passagem.

Uma fotografia grava apenas a aparência. Ao revelar o processo de produção destas imagens, este documentáriopermite ao espectador o acesso aos detalhes de um contexto que estão dissimulados na própria imagem, adicionando a informação que permite deslindar essa mesma dissimulação – no fundo, ensinando-nos como ver é, por princípio, estar imediatamente disponível para acreditar no que se vê. Presente no festival, Jan Vasak, produtor de Robert Doisneau: Through the Lens, esclarece-nos como estes aparentes ‘retratos de situação’ encobrem o projeto geral de mîse-en-scène em que assentam: ‘‘A revista Life encomendou uma série chamada ‘Amantes de Paris’. Mas, nos anos 50, os namorados não se beijavam nas ruas de Paris. Esta visão ‘nós somos franceses, somos românticos e beijamos toda a gente’ não é assim tão simples, e nos anos 50 ainda era menos – as pessoas não se beijavam na rua. Mas a imprensa americana tinha vontade de exprimir no seu jornal esta visão de uma Paris romântica. Então, Doisneau decidiu pegar em dois atores e fotografá-los por todo o lado na cidade. No meio destas fotos, há ‘O Beijo do Hotel da Cidade’. Anos mais tarde, a responsável por uma sociedade de edição de postais encontra esta magnífica foto. A foto dá a volta ao mundo e torna-se o emblema dos amantes de Paris, o emblema de Doisneau. No momento dos atentados de novembro, a foto foi ampliada, impressa e colocada na praça da República. É o símbolo da Paris que se ama, em fraternidade e em liberdade’’.

3. A mise-en-scène óbvia e não óbvia

Saber mais sobre a intenção que precede o gesto coloca-nos no fora-de-campo da imagem fotográfica. Este ultrapassar dos limites do quadro que encaramos, reajusta a sua leitura, esclarecendo como o próprio meio que vemos (a imagem) molda o nosso modo de ver. Ao contrário de Mapplethorpe, o estúdio de Doisneau era a rua. Fotógrafo-flanêur, não lhe conseguimos recordar uma fotografia que não seja protagonizada por pessoas – gesto que, de imediato, denuncia um compromisso com um fundo de realidade e uma permanente disponibilidade para as variações da alteridade humana. Mas o aparente esquema de observação do quotidiano encenado por Doisneau oblitera o princípio de encenação que geralmente o constitui e produz imagens que passam por documentos da realidade quando têm apenas a realidade como referente. Não estamos em Paris, estamos na Paris de Doisneau

4. O perigo da ‘beleza’

A reconstrução do espaço público a partir da modelação desse mesmo espaço, progressivamente conduzida por Doisneau, decorre de uma intenção declarada de aperfeiçoar a realidade a partir da criação fotográfica. Porque a fotografia cria memória, este um gesto consciente: a fotografia é uma ficção da mesma forma que a memória é uma ficção. É necessário ver para lá da óbvia plasticidade: a calma e a tranquilidade que estas imagens perpassam, veículos de uma adocicada visão poética da vida, carregam também um nocivo convite ao conformismo. Se nada há a mudar no que é supremamente belo, não devemos moralmente fugir de embelezar os mais críticos contextos políticos e sociais?

5. Doisneau: essa é a Paris onde quero viver

Há hoje, na França, ruas e escolas primárias batizadas em honra a Doisneau, assinalando a sua atenção às crianças que povoavam as ruas, e os inúmeros postais e calendários dos seus famosos casais a beijar-se ressurgem a cada recanto nas lojas de souvenirs. Alinhou as suas séries ao longo de 20 photo-books, criando relações por meio da montagem, que nos recordam da defesa da série fotográfica como cinema demonstrada pelo seu contemporâneo e conterrâneo Chris Marker em La Jetée (1962).

Na obra de Doisneau, as relações de aproximação ao cinema não se esgotam aí. A mîse-en-scéne é o seu laboratório permanente, progressivamente retrabalhando a imagem fotográfica enquanto linguagem produtora de encantamento. Consciente das possibilidades da fotografia enquanto recurso publicitário, Doisneau produz imagens perfeitas perpassadas por um repetitivo romantismo comercial que usa a fotografia, acima de tudo, para produzir ‘objetos de desejo’.

6. Doisneau e Mapplethorpe: pontos de contato

Recorrentemente descrito como um caçador de imagens, Doisneau é mais precisamente – tal como Mapplethorpe – um encenador de imagens. Se Mapplethorpe é, entre outras coisas, um dos mais celebrados retratistas de celebridades, colecionando poses de stars, Doisneau pagaria a atores para encenar a França onde todos gostariam de viver. Cientes de que a fotografia impõe cultura sobre a cultura, constroem obras dirigidas às massas, mas antecipadas por intenções muito distintas. A fotografia de Doisneau testemunha uma utilização estratégica da fotografia no sentido da teatralização controlada do real que preservava todos os indícios de verossimilhança. Por sua vez, a construção do nova-iorquino Mapplethorpe consistia numa performatização exagerada de rostos, corpos e gestos que, desafiando a sua época com demarcado sentido de risco, criavam imagens explícitas da homossexualidade, do travestismo ou do sadomasoquismo gay.

Independentemente dos temas intrínsecos a cada um, não deixavam ambos de dirigir-se às massas, integrando a produção de imagens numa lógica de mercado.

7. Não há imagens inocentes

Tal como não há inocência no gesto de fotografar, também não há imagens inocentes. É aí que o título original do documentário sobre Doisneau (Doisneau – Le révolté du Merveilleux, ou Doisneau – A revolta do maravilhoso)erra fatalmente. Não há margem para vestígios de revolta nessa exaltação do Maravilhoso.

Apesar das similitudes, refletir sobre o lugar no presente de dois fotógrafos tão diferentes como Doisneau e Mapplethorpe é, afinal, abrir uma fenda entre um clássico e um contemporâneo. Se é inegável que ambos avançaram tecnicamente na fotografia, enquanto a obra de Doisneau se instala no exercício das convenções estéticas e temáticas, a de Mapplethorpe questiona-as. A que lugar pertence a ideia de Belo na arte contemporânea?

8. Autoridade e autoria

Recordemos Susan Sontag quando explica como as ‘‘imagens produzidas por câmaras são o principal acesso às realidades das quais não temos referência direta’’. Mas é porque qualquer câmara – fotográfica ou de filmar – não se opera sozinha que devemos sublinhar Alan Sekula quando este escreve que, irremediavelmente, qualquer fotografia transporta uma ‘‘mensagem que incorpora um argumento’’. Mensagem esta que poderá ter uma panóplia de leituras distintas consoante o contexto. Assim, não é possível deduzir simplesmente de Doisneau uma raiz política conservadora ao sabermos que as mesmas fotos, nomeadamente as suas composições de família, tanto eram compradas por publicações de direita como de esquerda. Capaz de enformar o nosso pensamento e dirigir o nosso olhar para onde quer, a imagem é ativa. Consoante o contexto, esta ação pode ser uma manipulação.

9. Fotografia, o turismo comum

Se aconteceu que a cidade mais turística do mundo fosse também o local de nascimento da fotografia (e o berço europeu do cinema), adivinhamos que Paris tenha sido a primeira cidade a promover o colecionismo de postais. Como outros fotógrafos, foi a estratégia de divulgação do seu trabalho em formato-postal o que possibilitou ao parisiense Doisneau a continuidade do desempenho profissional da fotografia e o que, numa fase tardia, lhe trouxe uma notoriedade popular. Na entrevista que dá a Régis Debray em Iténeraire d’un Cinéfils(Pierre-André Boutang e Dominique Rabourdin, 1997), Serge Daney confessa-se ávido colecionador de postais e chama-lhe ‘cinefilia’. Tal como stills de filmes, os postais relacionam-se com a fotografia e com o cinema enquanto pontos-de-partida de uma viagem. A imagem é uma porta de imediata expansão do mundo, de transporte instantâneo para outra realidade, de tal forma que Susan Sontag afirmaria que ‘‘a fotografia é a mais soberana forma de turismo’’.

10. Tirar fotografias / fazer fotografias

Sérgio Mah escreveu que uma coisa é tirar, outra coisa é fazer fotografias. Há um peso a sublinhar nessa intencionalidade do “fazer”, notando como esta dimensão construída se encontra intimamente relacionada com o cálculo do custo inerente à produção de uma imagem. Com as possibilidades do digital, ao disseminado hábito de ‘‘tirar fotografias’’ corresponde um exercício de pós-produção: hoje, o tempo é gasto depois, num exercício seletivo que navega no interior de uma enorme quantidade de fotografias acumuladas, substituindo a reflexão que antecedia o fotografar no suporte analógico. Para lá de espectadores da arte fotográfica somos, mais do que nunca, agentes ativos num processo contemporâneo de redefinição do conceito de fotografia, centro em mutação permanente. Quem é fotógrafo numa sociedade em que toda a gente fotografa? No seu Ensaio sobre a fotografia, Flusser escreve que ‘‘de modo geral, toda a gente possui um aparelho fotográfico e fotografa’’, mas com hábitos que ‘‘eterniza(m) a automaticidade inconsciente de quem fotografa’’.

11. O pensar e o fazer

Apesar de estilisticamente desiguais, ambos os filmes garantem o teor informativo que se espera de um documentário biográfico, mas, como tantas vezes acontece neste formato, não se preocupando formalmente em estar à altura do homenageado. Certo é que, melhor ou pior, temos acesso a um retrato de contexto e, no exercício de comparar os dois fotógrafos, reconhecemos como avançaram tecnicamente no suporte artístico em que criaram, mas utilizaram o mesmo medium para responder de formas muito distintas à sua realidade. Perante a ininterrupta diversidade de ações possíveis, é consciente de que não existem imagens inocentes, que Nicole Brenez prescreve à epidemia da velocidade disseminada pela criação contemporânea: ‘‘há que manter permanentemente presente a questão: qual é o propósito de fazer uma imagem ou de não fazer nenhuma?’’.






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