Publicado em 10/11/2018

por Juliana Costa


O passado nunca morre. Não é sequer passado”, diz Godard, citando Faulkner, em seu tratado História(s) do Cinema(Histoire(s) Du Cinèma, 1988). Como cristalização do mito do eterno retorno, aquele em que não há passado ou futuro (apenas presentes que se repetem infinitamente), o cinema termina e recomeça o mundo a cada segundo de filme projetado. É herdeiro de toda memória, já que as imagens carregam em si o DNA de suas ancestrais. Ou mesmo são suas ancestrais, ou fantasmas de suas ancestrais, ou fantasmas de fantasmas de um mundo que se duplica e reduplica nos espelhos da memória. Fantasma que carrega em si a presença de algo ausente, a imagem viaja no tempo e no espaço renovando sua permanência no imaginário do mundo. Tudo acontece neste mesmo instante, porque todos os nossos fantasmas aqui estão. O eterno retorno, esta ideia de que o mundo se repete infinitamente no presente, tem, no cinema, seu testemunho.

Neste vigésimo Festival do Rio, alguns filmes comentam este labirinto temporal que é o cinema, por meio de suas imagens e narrativas. Dois deles são, obviamente, de Hong Sang-soo. No universo do cineasta do filme infinito, em que todos os filmes são como um só, o personagem dorme (ou escreve) e o mundo recomeça. Hong Sang-soo ama seus personagens a ponto de deixá-los livres na narrativa – nunca sabemos o que acontecerá no próximo minuto. Amor que também o impede de abandoná-los, filme após filme, já que parecem sempre os mesmos, dispostos em diferentes situações inspiradas pelos diferentes lugares em torno do qual cada história se passa. Seus filmes são sempre os mesmos e sempre outros. Em Grass (2017), o cineasta dispõe seus atores em um café onde o dono aprecia música clássica, que serve de moldura para os dramas de seus freqüentadores (o uso da trilha é ponto alto do filme). Kim Mim-hee é uma jovem que observa e escreve sobre os personagens a sua volta. As histórias se sucedem em cenas de diálogo: um ator falido pede abrigo a uma amiga após uma tentativa de suicídio, um casal sofre com a perda de uma amiga, e com um movimento de câmera, todas elas são contadas por Kim Min-hee. Sherazade que conta a história sem fim, escreve sobre todos aqueles dramas, que são todos os dramas do mundo.

Universo circular

Dentro do universo circular de Hong Sang-soo, Kim é a narradora. Mas livre que é, em determinado momento a personagem também rompe com a sua condição, vai ao encontro de seus personagens, e protagoniza a cena mais cômica do filme, em que almoça com seu irmão e a namorada. Em Hotel às Margens do Rio, novamente Kim e sua beleza sob a neve, obviamente, em um hotel. Aqui a circularidade temporal de Hong Sang-soo se dá pelo sono (e pelo sonho). Tudo acontece e o filme volta para o sono das amigas que estão sofrendo uma desilusão amorosa em um dos quartos. No mesmo hotel está um escritor recluso que recebe a visita indesejada de seus dois filhos. De observador a observado (Hong não tem pudores em emoldurar Kim Min-hee em janelas e quadros), o escritor vira personagem onírico da jovem em apenas um corte. E de moldura em moldura, de corte em corte, o mundo de Hong Sang-soo termina para recomeçar no(s) próximo(s) filme(s) – pela velocidade do cineasta, pode-se esperar por uma estreia já no próximo festival.

Enquanto Hong evidencia a repetição do mundo por meio da infinitude das possibilidades narrativas, Faca no Coração (Un Couteau dans le Coeur, 2018), de Yann Gonzáles – um giallo queer cinéfilo, em que Vanessa Paradis reina absoluta em sua lascívia –, reatualiza o tempo pelo jogo de espelhos. Quase diametralmente oposto ao filme perene de Hong Sang-soo, as obras se tocam justamente no desejo de imprimir em suas estéticas a repetição infinita do mundo por suas imagens. Aqui, a cachoeira das duplicações do eterno retorno se passa em sets de filmagem de películas pornográficas, na Paris de 1979.

Imagem 1. Um jovem é vítima sobrevivente de um crime bárbaro de motivações homofóbicas. Imagem 2. Passa a carregar na mente as imagens do horror. Imagem 3. O rapaz tem suas imagens mentais revividas por um filme pornográfico underground. Imagem 4. Começa uma série de assassinatos motivado pelas imagens revividas pelo filme. Imagem 5. Uma diretora de cinema pornô apaixonada pela montadora (montagem, sua doce obsessão) produz filmes inspirados pelos assassinatos do jovem. Imagem 6. O rapaz assiste aos filmes produzidos a partir dos assassinatos cometidos a partir da visão dos filmes... E assim, sucessivamente, viveram felizes para sempre.

Mais do que atualizar as imagens nostálgicas de violência e sexo do giallo italiano, os assassinatos em seqüência do slasher norte-americano, as fantasias queer dos anos 1970 e 1980, Yann Gonzales crava a faca no coração do cinema ao lançar o espelho das imagens na própria trama, jogando o espectador em looping temporal infinito.

Opção pelo sonho

O sonho talvez seja a opção mais recorrente para comentar o labirinto temporal das imagens cinematográficas. Opta pela trama onírica, Longa Jornada Noite Adentro (Long Days Journey Into Nigth, 2017), de Bi Gan, um passeio desconcertante pelo interior da mente de um provável assassino obcecado pela imagem de uma mulher (o fantasma do tempo parece mesmo vestir saias). Com atmosfera néon noir, realidade e pensamento, passado e presente, se fundem e se confundem em labirintos desenhados por uma câmera flaneur, sobretudo na segunda metade do filme: longo plano-seqüência mente adentro. Pistas da repetição e suspensão do tempo se acumulam ao penetrarmos nas galerias sem saída dos sonhos e visões do personagem: relógios parados, nomes e rostos duplicados, um filho que ainda não nasceu. A suavidade com que Bi Gan se aproxima e se afasta dos personagens, nos coloca na posição do sonhador fora do tempo, fora do campo, que ora persegue uma história, ora investiga um lugar. Sonhador consciente, se diz o protagonista. Está falando de nós?

O tempo circular, a repetição do passado e do futuro no presente, é desejo de ruptura da progressão linear do tempo. São as imagens se chocando sem a proteção de um espaço temporal que as isolem. Como no museu imaginário de Malraux, em que o tempo é a distância entre dois quadros. Ou entre dois planos. Não importa a distância temporal entre as imagens, mas o corte, a passagem, a relação, a montagem. A doce obsessão de Godard. Estar entre imagens fantasmas é também construção de memória, é elo entre passado, presente e futuro.

Perseguindo este elo, Guy Madin, Evan Johnson e Galen Johnson refazem em A Névoa Verde (The Green Fog, 2017) o clássico da imagem perene: Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958), de Alfred Hitchcock. Com cenas de filmes de todos os tempos rodados em São Francisco, A Névoa Verde recria o filme de Hitchcock em todas as suas passagens, enfatizando aspectos subliminares contidos na narrativa e nas imagens.

A essência deste pensamento pode ser fruída pelo novo delírio visual de Jean-Luc Godard, Imagem e Palavra (Le Livre des Images, 2018).  Nele o cineasta localiza seu espelho em imagens e cenas de História(s) do Cinema(Histoire(s) Du Cinèma, 1988), realizando uma arqueologia da arqueologia das imagens. Mas Godard retoma suas próprias imagens para violentá-las, explodi-las, distorcê-las a ponto de ficarem irreconhecíveis, submetendo-as ao horror do mundo. Sobre o tempo, disse uma vez: “A imagem virá no tempo da ressurreição”, ou será que a imagem é o tempo da ressurreição? Para sempre e agora Jhonny Guitar pede a Vienna para mentir, e cada vez que o cinema apresentar um reencontro amoroso, Jhonny Guitar estará pedindo para Vienna mentir. Áudio perdido por entre as imagens flamejantes: “Você não quer mesmo se tornar imortal? “O que será de mim se eu não morrer?”. Será imagem.



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