Publicado em 10/11/2018

por Leonel Matusse Jr 


Clementina, documentário de Ana Rieper concorrente na Première Brasil do Festival do Rio 2018, acaba sendo, em parte, uma tentativa de voltar para o lugar de origem da cantora.

O processo decorre de forma espontânea por meio de depoimentos feitos no rico e bem aproveitado material de arquivo – pese embora o uso abusivo de imagens de entrevistas televisivas –, quando se explica a origem da música de Clementina de Jesus, uma das vozes mais importantes da música brasileira, particularmente do Rio de Janeiro.

O sentido que o documentário leva é rumo a um destino que reconhece o ponto de partida, repensando a inclusão, de alguma maneira, no ponto de chegada. Ou seja, nota-se, a partir dos discursos de Clementina e dos especialistas entrevistados, que as raízes africanas estão ali patentes, apesar de não se saber ao certo de que país os seus antepassados vêm e que o Brasil, por sua vez, tem como contributo. Aliás, este dado não constitui novidade, pois Jair Severiano já terá dito que Clementina de Jesus representa a prova cabal de que a presença de África na música popular brasileira é um fato inequívoco.

De certa maneira, este filme dialoga com a discussão sobre a questão da construção da identidade na diáspora concebida por Stuart Hall, pois acaba ilustrando a forma como é preservada a memória da região de onde vem os bisavós da cantora, que chegaram escravos.

Hall, ao estudar a diáspora caribenha no Reino Unido, constatou que as pessoas de lá oriunda das ilhas criavam um espaço no seu imaginário no qual, através de alguns hábitos,sentiam-se a preservar os laços culturais da sua africanidade.

A diferença do filme com o  cenário acima  descrito é que, no caso de Clementina, não há interesse em voltar para África(mesmo porque desconhece o país de onde vêm os seus antepassados).

É na música, conforme documentário retrata, que os laços com o passado participam na construção da identidade da cantora. Este processo ocorre a partir da memória herdada e partilhada pelos seus pais. O discurso do filme nos remete ao fato de que havia na cantora a consciência de pertença a um lugar que não este, enquanto, por outro lado já adotou o ponto de chegada como o seu novo lar. 

Se Stuart avança que a imagem de Moisés, o herói bíblico que conduziu o êxodo do Egito para Israel – lugar de origem – com o intuito de liberta-lós da escravidão, norteia os caribenhos (metáfora ampliada por êxodos de Bob Marley), em  Clementina, este exercício é meramente simbólico.

Apesar de esclarecer que a religião da artista é católica romana e,neste exercício,inserir a religião umbanda, híbrida do cristianismo e da religiosidade africana, o filme poderia ter explorado mais, por exemplo, o que poderia ser considerado um contributo da igreja católica na formação musical. Neste ponto, o documentário perde a oportunidade de explorar a zona de contato entre a cultura do colono, à cultura indígena e a negra,da qual artista faz parte.

De igual modo, a direcção marginalizou o facto de a aceitação da cantora não ter sido fácil devido a sua cor de pele. Sabe-se que a sua patroa não a quis dispensarpara que pudesse seguir a sua carreira. Caetano Veloso conta que, numa apresentação televisiva ela terá sido chamada de macaco pela plateia. Wellington Almeida explica que somente a críticaa tratava com o devido reconhecimento.

É interessante o modo como o discurso do documentário é construído, a explorar diversas facetas de Clementina, cujo efeito último é a humanização da artista. A figura dos fazedores de arte em projectos similares tende a ser elevada a patamares divinos, ignorando suas trivialidades. A incorporação de entrevistas que passam pela família e amigos torna ainda mais rica a informação sobre a cantora.O facto de tratar-se de uma artista cujo potencial vocal é seu forte foi aproveitado para a trilha sonora, que é sustentada pelas músicas de Clementina.

Clementina é um resgate histórico e ao mesmo tempo um filme profundamente atual, se formos a considerar que o Brasil vive hoje uma efervescência do movimento negro, que tem entre suas principais reivindicações a ausência de representatividade e marginalização do seu legado.

Por outro lado, o documentário Zuza Homem de Jazz, sobre Zuza Homem de Mello, nos conduz à mesma questão, quando ilustra que o jazz reinventa-se na sua passagem pelo Brasil, onde revestiu a sua textura com o tecido sonoro da Bossa Nova.

O género musical igualmente efetua movimentos migratórios e, nesse processo, alterações são inevitáveis. O documentário Zuza responde, desta feita, parte da pergunta sobre que influência a música que obedece às ondas de Ipanema exerceu sobre os norte-americanos.

Num risco, ouso sugerir que este longa-metragem, que segue a sequência linear da cronologia, a excepção de cenas como a volta à Nova York décadas depois de lá ter estudado, para rever o seu colega Bob, é um marco histórico do modo como a arte e, consequentemente, a cultura, reinventam-se no contacto com outras formas de sentir e perceber o mundo.

Com um notável trabalho fotográfico de Chico Orlandi, a diretora Janaína Dalri constrói um discurso em que uma das possíveis leituras é: como é que o jazz, nos Estados Unidos, incorporou as frases desta zona de contacto com a música brasileira? Neste ponto, ambos subsidiam-se na discussão sobre a questão da construção de identidades.




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