Uma identidade construída de rupturas e reencontros Leonel Matusse Jr analisa os documentários musicais Clementina e Zuza Homem de Jazz
por Leonel Matusse Jr
Clementina, documentário de Ana Rieper concorrente na Première Brasil do Festival do Rio 2018, acaba sendo, em parte, uma tentativa de voltar para o lugar de origem da cantora.
O processo decorre de forma espontânea por meio de depoimentos feitos no rico e bem aproveitado material de arquivo – pese embora o uso abusivo de imagens de entrevistas televisivas –, quando se explica a origem da música de Clementina de Jesus, uma das vozes mais importantes da música brasileira, particularmente do Rio de Janeiro.
O sentido que o documentário leva é rumo a um destino que reconhece o ponto de partida, repensando a inclusão, de alguma maneira, no ponto de chegada. Ou seja, nota-se, a partir dos discursos de Clementina e dos especialistas entrevistados, que as raízes africanas estão ali patentes, apesar de não se saber ao certo de que país os seus antepassados vêm e que o Brasil, por sua vez, tem como contributo. Aliás, este dado não constitui novidade, pois Jair Severiano já terá dito que Clementina de Jesus representa a prova cabal de que a presença de África na música popular brasileira é um fato inequívoco.
De certa maneira, este filme dialoga com a discussão sobre a questão da construção da identidade na diáspora concebida por Stuart Hall, pois acaba ilustrando a forma como é preservada a memória da região de onde vem os bisavós da cantora, que chegaram escravos.
Hall, ao estudar a diáspora caribenha no Reino Unido, constatou que as pessoas de lá oriunda das ilhas criavam um espaço no seu imaginário no qual, através de alguns hábitos,sentiam-se a preservar os laços culturais da sua africanidade.
A diferença do filme com o cenário acima descrito é que, no caso de Clementina, não há interesse em voltar para África(mesmo porque desconhece o país de onde vêm os seus antepassados).
É na música, conforme documentário retrata, que os laços com o passado participam na construção da identidade da cantora. Este processo ocorre a partir da memória herdada e partilhada pelos seus pais. O discurso do filme nos remete ao fato de que havia na cantora a consciência de pertença a um lugar que não este, enquanto, por outro lado já adotou o ponto de chegada como o seu novo lar.
Se Stuart avança que a imagem de Moisés, o herói bíblico que conduziu o êxodo do Egito para Israel – lugar de origem – com o intuito de liberta-lós da escravidão, norteia os caribenhos (metáfora ampliada por êxodos de Bob Marley), em Clementina, este exercício é meramente simbólico.
Apesar de esclarecer que a religião da artista é católica romana e,neste exercício,inserir a religião umbanda, híbrida do cristianismo e da religiosidade africana, o filme poderia ter explorado mais, por exemplo, o que poderia ser considerado um contributo da igreja católica na formação musical. Neste ponto, o documentário perde a oportunidade de explorar a zona de contato entre a cultura do colono, à cultura indígena e a negra,da qual artista faz parte.
De igual modo, a direcção marginalizou o facto de a aceitação da cantora não ter sido fácil devido a sua cor de pele. Sabe-se que a sua patroa não a quis dispensarpara que pudesse seguir a sua carreira. Caetano Veloso conta que, numa apresentação televisiva ela terá sido chamada de macaco pela plateia. Wellington Almeida explica que somente a críticaa tratava com o devido reconhecimento.
É interessante o modo como o discurso do documentário é construído, a explorar diversas facetas de Clementina, cujo efeito último é a humanização da artista. A figura dos fazedores de arte em projectos similares tende a ser elevada a patamares divinos, ignorando suas trivialidades. A incorporação de entrevistas que passam pela família e amigos torna ainda mais rica a informação sobre a cantora.O facto de tratar-se de uma artista cujo potencial vocal é seu forte foi aproveitado para a trilha sonora, que é sustentada pelas músicas de Clementina.
Clementina é um resgate histórico e ao mesmo tempo um filme profundamente atual, se formos a considerar que o Brasil vive hoje uma efervescência do movimento negro, que tem entre suas principais reivindicações a ausência de representatividade e marginalização do seu legado.
Por outro lado, o documentário Zuza Homem de Jazz, sobre Zuza Homem de Mello, nos conduz à mesma questão, quando ilustra que o jazz reinventa-se na sua passagem pelo Brasil, onde revestiu a sua textura com o tecido sonoro da Bossa Nova.
O género musical igualmente efetua movimentos migratórios e, nesse processo, alterações são inevitáveis. O documentário Zuza responde, desta feita, parte da pergunta sobre que influência a música que obedece às ondas de Ipanema exerceu sobre os norte-americanos.
Num risco, ouso sugerir que este longa-metragem, que segue a sequência linear da cronologia, a excepção de cenas como a volta à Nova York décadas depois de lá ter estudado, para rever o seu colega Bob, é um marco histórico do modo como a arte e, consequentemente, a cultura, reinventam-se no contacto com outras formas de sentir e perceber o mundo.
Com um notável trabalho fotográfico de Chico Orlandi, a diretora Janaína Dalri constrói um discurso em que uma das possíveis leituras é: como é que o jazz, nos Estados Unidos, incorporou as frases desta zona de contacto com a música brasileira? Neste ponto, ambos subsidiam-se na discussão sobre a questão da construção de identidades.
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